Um fenómeno extremo, com um possível "comboio de tempestades" aliado a uma cidade mal preparada e algum "azar" à mistura, pode explicar parte do caos que acordou a região de Lisboa esta quinta-feira. A geógrafa Maria José Roxo sublinha que a situação não é inédita, mas a catástrofe podia ter sido minimizada. Falhou, como sempre, a prevenção, diz a especialista que insiste na urgência de preparar o território para estes e outros fenómenos extremos. Sobre eventuais falhas no sistema de avisos à população, Maria José Roxo considera que o mais importante é que "as pessoas não percebem o que significa um aviso amarelo, laranja ou vermelho".
"Tudo o que era estrutural e que podia controlar este tipo de situações falhou. Agora, só nos resta correr atrás do prejuízo, como tantas vezes falei. Como se isto fosse inédito... não é! Lamento, não é inédito. A área de Algés e de Alcântara e outras zonas da cidade sofrem com frequência com este tipo de situações, com menos intensidade. Noutras áreas do país também. Nós, que fazemos investigação, passamos o tempo a falar nestas coisas e é como se estivéssemos a pregar para os peixes", lamenta Maria José Roxo. É frustrante, admite a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. "Agora, não podemos fazer grande coisa. Agora, resta limpar."
A zona da baixa de Algés acordou num cenário de caos, com dezenas de lojas inundadas.
Sérgio B. Gomes,Joana BourgardO prejuízo era evitável, defende a geógrafa, admitindo que o facto de Lisboa se ter transformado numa cidade muito impermeabilizada ajuda a aumentar o problema. Por outro lado, houve ainda mais uma agravante. "Tivemos azar porque na parte baixa de Lisboa esta chuva intensa coincidiu com a maré cheia, o que fez com que a água não conseguisse sair." Ainda assim, Maria José Roxo reconhece que houve momentos em que "a chuva era tão forte, que rapidamente as estradas se transformaram em rios".
O extremo vai tornar-se comum
Apesar de não ser inédito, é inegável que se tratou de um fenómeno extremo. "São extremos. É uma grande quantidade de água em pouco tempo e com muita intensidade." Mas as cidades têm de estar preparadas para extremos, defende. "O problema é esse. Nunca se pensa em soluções estruturais para extremos, depois, quando há uma grande quantidade de água para escoar, não conseguimos responder." Maria José Roxo reconhece que o que se passou esta madrugada em Lisboa foi grave. "O que é que o torna mais grave? Cidades cada vez mais impermeabilizadas, por exemplo. Isso e má planificação urbana e falta de ordenamento do território."
Não há muito tempo, Maria José Roxo era uma das especialistas procuradas para falar sobre a grave situação de seca no país. "Eu sempre disse que estávamos em seca, mas que o que devíamos fazer era prepararmo-nos para as inundações. O que acontece em Portugal é que nunca nos preparamos para o que vem a seguir. Não há estratégia, não há planeamento", conclui.
Criar túneis de escoamento não chega
Temos de limpar sarjetas, ter cuidados especiais com os cursos de água agindo nos locais, criar bacias de retenção nas cidades, limpar as barragens. Sobre o projecto antigo de criação de túneis de escoamento que o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, foi agora recuperar e promete executar, a geógrafa admite que também pode ajudar. Mas só isso não chega. É preciso, por exemplo, olhar a montante, agir na confluência de cursos de água que sabemos que podem ser problemáticos.
É importante olhar para a natureza e território como um sistema e ver como todas as peças se ligam. "Nós ainda vamos ter mais más notícias por causa desta chuva. Deslizamentos de terra, desabamentos, queda de blocos. Não há só impacto nas cidades. No país, vamos ter outros acontecimentos relacionados com estas chuvas de alta intensidade", alerta.
Saber quanto choveu em quanto tempo
Sobre os dados da precipitação, Maria José Roxo admite valores elevados e intensidades muito fortes nas últimas horas. No site do IPMA, o registo mostra valores acima dos 70mm no dia 7 de Dezembro, mas ainda não estão publicados os desta quinta-feira. Para esta quinta-feira, os valores podem ultrapassar os 100mm. Entre os 20 e 30 milímetros em 24 horas, o que corresponde a 20 litros de água por metro quadrado, já é "uma chuva considerável" para algumas regiões do país, diz a especialista.
"No entanto, esses dados [do IPMA] vão-nos dar um total num período de tempo. Mas houve momentos em que a quantidade de água que caiu em cinco minutos, por exemplo, era elevadíssima. E isso é que torna a questão muito mais problemática." O que falta na equação é saber quanto choveu e em quanto tempo. Sabemos que foi muito.
E, já agora, importa dizer que esta quantidade de chuva não terá sequer um forte lado positivo na parte de repor a situação de carência nas barragens e albufeiras. Porque é demasiado num curto espaço de tempo, explica Maria José Roxo. "Vai encher e entulhar mais as barragens. Estas chuvas não são assim tão benéficas quanto isso. É benéfico porque precisamos de água. Mas o que era preciso era uma chuva mais controlada e que permitisse encher as nascentes e que não provocasse erosão nos solos, nem estas catástrofes nas cidades."
O "comboio de tempestades"
A geógrafa confirma que a região de Lisboa terá sido vítima de um "comboio de tempestades". O que é que isso quer dizer? "Os sistemas atmosféricos deslocam-se de oeste para este. O que está a acontecer é que temos uma série de depressões que traz esta chuva. Este sistema de depressões, alternando com o anticiclone dos Açores de que tanto se fala e que nos traz o bom tempo, fica associado a frentes que formam este sistema de nuvens que traz a chuva." Maria José Roxo explica que este sistema de depressões, o tal "comboio de tempestades", é algo normal no Inverno, mas neste caso da noite passada em Lisboa o factor anormal foi, de facto, a intensidade.
E os alertas à população?
Sobre a eficácia do sistema de alerta e avisos à população, a geógrafa considera que "estão a fazer a sua função". "Eu recebo alertas no meu telemóvel. O que é que falta? É o cidadão comum ter noção do que quer dizer um aviso amarelo ou vermelho", sublinha. Depois, uma vez mais, a sorte pode não ter estado do lado de Lisboa. "Estávamos na véspera de um feriado, perto do Natal, com muita gente nos centros comerciais e a deslocar-se, tínhamos muita gente em movimento. Mas, se as pessoas soubessem o significado dos avisos, podiam ter tomado decisões para se prevenirem", diz.
Mas, numa situação desta gravidade, não era possível avisar a população com mais antecedência? "Quando analisamos os modelos e vemos a evolução dos sistemas atmosféricos, temos um conhecimento que ainda assim é restrito. É óbvio que não se consegue prever se vai cair 50, 60 ou 70mm. Só se consegue prever que vai ser grave. Com os modelos, eu consigo dizer que vai chover com forte intensidade, mas não consigo dizer quanto nem onde, de forma precisa. Pode chover na Amadora 70mm e ali ao lado chover 120. A chuva não é homogénea", responde a geógrafa.
"A mudança climática é isto. Temos de lidar com extremos", remata, constatando: "Não podemos evitar que chov,a assim como não podemos evitar uma seca. A questão é minimizar o efeito. Como é que isso se faz? Ordenamento, planeamento das cidades e do território e, sobretudo, olhar para as questões estruturais."