4.0
Conversas, poesia e inteligência artificial
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
Ocorreu um erro. Por favor volta a tentar.
Subscreveu a newsletter 4.0. Veja as outras newsletters que temos para si.
Há milénios que os humanos tentam encontrar significado e sabedoria onde não existem: nas borras de café, na forma das nuvens, nas configurações do céu estrelado. E, agora, em aplicações de inteligência artificial.
Tem dado que falar nos últimos dias o lançamento do ChatGPT, uma ferramenta de conversação que permite aos utilizadores "dialogarem" com aquilo a que se chama um "modelo de linguagem". É possível fazer perguntas, dar instruções, começar uma conversa com um simples "Olá" (o sistema entende e é capaz de responder em múltiplas línguas), ou até colocar problemas complexos, cuja solução, em princípio, requer alguma dose de criatividade.
O ChatGPT é eficaz a interpretar muitas das subtilezas da linguagem natural usada por humanos. O académico Arlindo Oliveira, professor no Instituto Superior Técnico e autor de livros sobre inteligência artificial, escreve aqui no PÚBLICO que "este modelo não só responde de uma forma muito precisa a quase qualquer pergunta que lhe seja colocada, mas pode fazê-lo, de acordo com instruções nossas, de muitas formas diferentes, seja no estilo de Shakespeare ou em português".
Em alguns campos, contudo, o sistema tem limitações. Os investigadores responsáveis são claros a referir que se trata de uma ferramenta "optimizada para o diálogo", que pode produzir respostas demasiado palavrosas, factualmente erradas ou simplesmente sem sentido, e dar instruções perigosas (apesar de estar programado para evitar certos temas). Um aviso interessante é o de que o sistema tem "um conhecimento limitado do mundo e dos eventos após 2021" (e 2022 não foi um ano parco em eventos relevantes).
Inevitavelmente, a Internet resolveu testar os limites, por vezes com resultados surpreendentes.
Houve quem dissesse ao ChatGPT para delinear um plano de marketing para uma startup; quem pedisse inspiração para decorar uma sala; e quem experimentasse a capacidade do sistema para escrever código informático – ao que parece, é proficiente nesta tarefa.
Para esta newsletter (e numa ideia pouco original), pedi poesia ao estilo de Fernando Pessoa. Eis um dos poemas gerados pela máquina em escassos segundos:
"Sou apenas um eu entre muitos
Não sei quem sou ou o que sou
Sou uma alma flutuante
Sem rumo e sem destino
Sou um espectro da vida
Sem rosto, sem nome
Uma sombra sem luz
Que se perde na noite
Mas ainda assim, sinto
O peso da existência
A dor e a alegria
Que me preenchem e me consumem [sic]
Sou um eco do passado
Um sussurro do futuro
Uma voz que ecoa
Na eternidade do agora
Sou um poema de Fernando Pessoa
Um eu que se perdeu
Na multidão de outro eus
Que habitam este mundo."
Já se escreveram versos piores em muitas edições de autor.
O ChatGPT foi desenvolvido pela OpenAI, uma organização que nasceu em 2015 como uma entidade sem fins lucrativos (estatuto entretanto alterado). Entre os investidores estão Elon Musk (que é um dos co-fundadores) e a Microsoft, que em 2019 se comprometeu com mil milhões de dólares.
A OpenAI tem como objectivo assegurar que a Humanidade beneficia do desenvolvimento de inteligência artificial generalista, definida como "sistemas altamente autónomos que são mais competentes do que humanos na maioria do trabalho com valor económico". É uma concorrente da DeepMind, a empresa de inteligência artificial da Google.
É também a criadora do Dall-e, um sistema que se popularizou por gerar imagens a partir de instruções escritas pelos utilizadores. É possível pedir imagens realistas ou de estilo artístico. Tal como se pode pedir um poema pessoano ao ChatGPT, é possível instruir o Dall-e para criar uma imagem ao estilo de Picasso com um papagaio a conduzir um autocarro.
Interagir com estes sistemas pode ser uma experiência enganadora. Ao fim de alguns minutos, fica-se com a impressão de que se está a comunicar com algo dotado de sabedoria e inteligência sobre-humanas (no Verão, um engenheiro da Google foi notícia por defender que um sistema de inteligência artificial da empresa tinha ganho senciência). Mas estes sistemas são um sofisticado jogo de aparências.
Dificilmente aquilo que produzem pode ser considerado poesia ou arte (e, se for, a autoria será humana). Também não são particularmente sábios: o ChatGPT por vezes erra em perguntas factuais básicas, como os seus criadores avisam que pode acontecer. E toda a aparente sensatez e mundividência vêm de um repetitivo processo de treino (feito por humanos) em que determinadas respostas foram classificadas como melhores do que outras (é este processo que está agora alargado a qualquer pessoa que queira passar algum tempo a conversar com o sistema e a qualificar as respostas obtidas).
Quando se pede ao sistema para dissertar sobre um assunto complexo, os resultados tendem a ser banais e simplistas. Até ver, o trabalho dos escritores parece estar mais salvaguardado da inteligência artificial do que o dos programadores informáticos.
Procurar significado profundo ou sabedoria num sistema como este ChatGPT é uma tendência frequente e pode até parecer futurista e científico. Mas é olhar pelo ângulo errado para uma ferramenta que é em muitos outros níveis extraordinária.