Dos desafios da escola pública
Na educação, uma dança de homens acima dos deuses e da democracia consolidou a exclusão dos professores e contrariou a moderna redução de patamares das organizações.
Antes do mais, recorde-se que várias democracias ocidentais entraram em pânico com a crescente falta de professores e com o desprestígio da escola pública. E como as consequências das políticas educativas se observam 20 anos depois, compete aos governos recuar no tempo e avaliar o que provocou a desvalorização profissional e social dos professores. Há, desde logo, uma conclusão: as democracias que resistiram aos fenómenos humanizaram dois instrumentos na gestão das políticas públicas – folhas de cálculo e aumento da escala na gestão das organizações.
Ainda outro ponto prévio: há muito que há conhecimento e meios para que os concursos de professores por lista graduada não sejam notícia. Professores com a casa às costas deveu-se, muitas vezes, à existência elementar de vários candidatos a uma vaga. E se o afastamento da residência exigia apoio, mais sensatez e competência na distribuição de serviço reduziria muita deslocação.
A bem dizer, o temor com a falta de professores exigiu medidas apressadas. Em Portugal, convocou-se um recuo de 15 anos. Recuperou-se os estágios remunerados e alterou-se as habilitações de acesso à profissão. O desespero obrigou ao reconhecimento dos erros das últimas duas décadas na formação dos professores.
Aliás, esse programa neoliberal abrangeu a avaliação e a carreira dos professores, a gestão da organização e o encerramento a eito de escolas (cerca de dez mil desde 2001 – dois terços –, que aceleraram a desertificação do interior do país). Contudo, o Governo teima em não recentrar o que a outra maioria do mesmo partido aplicou.
Acima de tudo, o recuo demonstra a desorientação no Governo da coisa pública assente num equívoco histórico: somos apenas dez milhões de habitantes, e não 100 milhões, que mereciam um único quadro de divisão administrativa que integrasse todos os sectores.
A propósito, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira alertou em 2001: “Temos 38 quadros de divisão administrativa e não um, como seria moderno e razoável.” Pois bem, dois anos depois, em 2003, o secretário de Estado da Administração Local, Miguel Relvas, acrescentou a 39.ª divisão e inaugurou as comunidades intermunicipais (CIM) com competências nos fundos estruturais. A partir daí, foram esses fundos que pagaram os salários dos professores dos cursos profissionais – e infernizaram o processo com procedimentos burocráticos “justificativos” –, numa habilidosa desorçamentação do Orçamento do Estado.
E se em 2022 já se terá ultrapassado a 45.ª divisão, é com perplexidade que se percebe a hipótese da epifania CIM passar a alojar professores em mapas. Nesse caso, o financiamento (PRR) dos salários resultará de projectos rápidos e fragmentados em regime de subvalorização da sala de aula. Acrescenta-se a este ambiente a desconfiança numa municipalização que vai inserindo as escolas, com os seus problemas “irresolúveis”, e em que 308 mini-ministérios da Educação convocarão mais alucinações.
Neste clima tão incerto, os governantes desdobram-se em justificações e clarificações. Afinal, diz-se que os concursos de professores não passarão para as autarquias e que serão conselhos locais de directores a seleccionar os candidatos aos mapas ou a outra qualquer divisão.
Será sempre uma sucessão de pesadelos. Não só se abandonará ainda mais a gestão de proximidade, como se tornará inatingível o conceito de escola que requer identidade, clima de confiança, quadros próprios de professores, inclusão e ensino de qualidade.
Por tudo isto, aumentou o número dos que concluem que a qualidade da escola pública está em queda. Apesar da dificuldade em se antecipar o futuro, é irrefutável que se perdeu a ideia de escola onde leccionaram, entre tantos outros, António Gedeão, David Mourão-Ferreira e Vergílio Ferreira, e que a jovem democracia elevou com um inequívoco avanço na escolaridade.
Sublinhe-se que a escola já se transformou numa organização escalada para crescentes e inúteis complexidades que “coram” de vergonha qualquer proclamação “simplex”. Esgotou os profissionais. Empurrou-os para uma periferia gerida por algoritmos. Atribuiu à sala de aula o estatuto de “sem voz”, negando os que mais avançaram no que levamos de civilização.
Aliás, comprovou-se a incapacidade portuguesa para consolidar políticas inclusivas. Persistiram conceitos completamente ultrapassados. Pareceu um fatalismo histórico. A sociedade em rede é absolutamente contraditória com tanta hierarquia. Em vez da rede, a totalidade do sistema mergulhou no “Grupo Fechado” que bloqueou canais participativos e mecanismos mobilizadores.
É oportuno recordar Jean-Jacques Rousseau (1712-1778: 281) em “Du contrat social ou Principes du droit politique": “Se houvesse um povo de deuses, ele governar-se-ia democraticamente. Um governo tão perfeito não convém a homens.”
Na educação, uma dança de homens acima dos deuses e da democracia consolidou a exclusão dos professores e contrariou a moderna redução de patamares das organizações. A sofisticação foi obra de “Grupos de Missão” associados às organizações que formam professores, à dezena e meia de sindicatos e às diversas associações que gravitam na órbita de quem decide. Fatalmente, corporizaram a receita do professor como um generalista orientado remotamente.
Em suma, o desafio de se deixar um mundo melhor através de uma escola pública de qualidade exige que tudo se faça para o regresso a George Steiner (2005:148) em A Lição dos Mestres: “Quem não estiver doente de esperança não tem a mais pequena hipótese de ser professor.”