Cansada de más notícias, Pippa fez um filme sobre a amizade entre polvos e humanos
Realizadora de Sabedoria do Polvo, que ganhou um Óscar, diz que o mundo precisava de uma história feliz sobre ambiente. Os humanos, diz, não podem afastar-se da natureza se a querem preservar.
Pippa Ehrlich não estava contente com o rumo do seu trabalho. Por mais informação sobre a natureza e a conservação do ambiente que “deitasse cá para fora”, nada parecia mudar. Os problemas do nosso planeta não se estavam a resolver, apenas a multiplicar-se. Até que conheceu Craig Foster e soube da amizade que desenvolveu com um polvo fêmea, que documentou em vídeo durante um ano. A jornalista percebeu que tinha a oportunidade de contar uma história sobre amizade, animais e conservação da natureza, tudo ao mesmo tempo.
As imagens captadas por Craig e outras captadas por Pippa Ehrlich na África do Sul deram origem ao aclamado documentário A Sabedoria do Polvo (My Octopus Teacher) – o primeiro documentário sul-africano na Netflix, que se estreou em 2020.
O filme, co-escrito, editado e realizado por Ehrlich, ganhou mais de 20 prémios internacionais, entre eles um Óscar, um Bafta e o Panda de Ouro da Wildscreen. O documentário retrata não só as interacções de cortar a respiração entre humano e polvo, mas também as técnicas que estes cefalópodes com uma inteligência fora do comum usam para enganar os seus predadores (e as suas presas).
Nos últimos seis anos, a realizadora tem feito parte do projecto Sea Change e explorado as florestas submarinas da Cidade do Cabo. Neste fim-de-semana está em Portugal: Pippa Ehrlich falou com o PÚBLICO a propósito do Exodus Aveiro Fest, um festival internacional de fotografia e vídeo de viagem e aventura que começou na sexta-feira e termina este domingo, e onde será oradora. Antes de se juntar à fundação Sea Change, Pippa trabalhou como jornalista ambiental, especializando-se no campo da ciência e conservação marinha e na relação entre os humanos e a natureza.
Comecemos pelo princípio: como surgiu a oportunidade de realizar este documentário?
Eu faço parte de um projecto chamado Sea Change e alguns colegas falaram-me do Craig Foster e da vida dele. Já tinha visto algumas das suas fotografias, mas nunca o tinha conhecido. Demorou algum tempo, mas finalmente consegui convencer um amigo a vir comigo conhecer o Craig pessoalmente. Nesse primeiro encontro, fizemos uma sessão de mergulho absolutamente incrível.
Passado um ano, estava num sítio estranho da minha vida, estava frustrada com o meu trabalho enquanto jornalista. Sentia que precisava de fazer algo com mais significado e falei com o Craig para saber se estava disponível para me ensinar a mergulhar e a encontrar animais debaixo de água. Eu já fazia mergulho há algum tempo, mas demorei a habituar-me a mergulhar nas florestas de algas da África do Sul.
Depois de seis meses de aprendizagem, ele perguntou-me se eu gostava de o ajudar a fazer um filme. Mostrou-me algumas imagens e disse-me que seria uma história sobre um polvo. E eu sentei-me na minha secretária, olhei para as imagens e comecei a chorar. Havia algo nas imagens que era tão forte que eu sabia que tinha de fazer aquele projecto. Despedi-me do meu trabalho nos dias seguintes.
Nunca tinha feito um documentário e havia muitas coisas que não sabíamos. Não tínhamos a certeza se alguma plataforma iria querer adquirir o produto final, era tudo um grande risco, mas começámos a ver as imagens. Toda a interacção que vocês vêem com o polvo já tinha acontecido antes de começarmos a fazer o filme. Quando esta “relação” se estava a desenvolver, o Craig não pensava em fazer um filme, só mais tarde é que essa ideia lhe surgiu.
Quando tempo passou desde esse primeiro mergulho até ao produto final ser lançado?
Mais ou menos cinco anos. E o documentário já se estreou há três anos.
Qual foi o seu papel no documentário?
Eu filmei muitas coisas, mas quase todo o material do polvo já estava filmado. Depois precisávamos de outras imagens. Do Craig a mergulhar, de outros animais, da floresta. Cerca de 15% das imagens do documentário foram filmadas por mim. Depois também editei tudo. Quando decidimos contar a história através da perspectiva do Craig, ele tornou-se mais uma personagem do que um realizador e eu assumi a esse papel com James Reed.
O seu trabalho anterior na fundação e como jornalista influenciou de alguma maneira este documentário?
Sim, de muitas formas. Durante o tempo que estive na Sea Change estava a trabalhar maioritariamente com cientistas e como jornalista, a fazer fact-cheking sobre a conservação da natureza, mas estava a sentir-me muito frustrada. Não importava a quantidade e qualidade da informação que estávamos a divulgar porque as coisas não estavam a mudar, não estavam a ficar melhor.
Fiquei muito entusiasmada por poder contar histórias de uma maneira diferente, em que conseguisse chegar ao coração das pessoas e à parte mais emocional de cada um. Era algo que não conseguia fazer enquanto jornalista.
Porque acha que este documentário teve tanto sucesso junto do público?
Acho que foi divulgado numa altura em que o mundo precisava de algo feliz, algo reconfortante, e as histórias sobre a natureza deixam-nos sempre com uma sensação de propósito. É uma história com personagens com que toda a gente se consegue relacionar, com coisas que são importante para todos, como a amizade, ter uma bom relação com a família, sentir-se conectado com algo. Acho que foi isto ressoou de uma forma muito forte com os espectadores.
Como foi a sua reacção da primeira vez que o Craig lhe falou do vínculo que tinha criado com o polvo?
Já sabia que o Craig era uma pessoa especial, divertida e muito prendada nas relações com os animais. Tal como a mulher dele, por isso acho que não fiquei muito surpreendida. Mas fiquei surpreendida com a dedicação dele com este polvo. Ia documentar e visitá-la todos os dias. E ainda me surpreendeu mais quando ele o conseguiu “apanhar”. Só me fez querer trabalhar mais com ele.
Durante os meses de mergulho, viu algum animal que não tivesse visto antes?
Sim, houve muitos animais que eu nunca tinha visto, como por exemplo um choco muito pequeno que só vemos nesta parte da África do Sul, vi-os no primeiro mergulho. Vi outro animal que se ama Haplocylix littoreus, que consegue aguentar mais de 300 vezes o seu peso corporal. Já fazia mergulho há dez anos, até mais, mas havia tantos animais que eu nem sabia que existiam.
A Sabedoria do Polvo ensinou muito aos espectadores. O que lhe ensinou a si?
Acho que a primeira coisa que aprendi durante o processo de fazer este filme, concretamente com o polvo e com o Craig, foi o quão poderoso é conectarmo-nos com a natureza e o quão recompensador é passarmos por esse processo, dedicarmos esse tempo para experienciar a natureza em todo o seu esplendor.
O processo de filmagens ensinou-me a conseguir começar uma coisa difícil e terminá-la. Não foi um filme fácil de se fazer, demorou muito tempo até que conseguíssemos obter alguma atenção para o que tínhamos criado e estávamos a ficar sem dinheiro para continuar a divulgar o filme. E também aprendi que é fácil trabalhar quando a equipa tem o mesmo objectivo e generosidade. Acho que toda a gente dedicou todo o seu talento àquele documentário, daí termos tido tanto sucesso com o resultado final.
O storytelling do vosso documentário é diferente de outros documentários de natureza. Foi difícil chegar a este equilíbrio entre narrativa e documentário?
Acho que a história nos obrigou a contá-la assim. Quando temos uma narrativa com esta força não podemos contá-la de outra maneira. Podíamos ter feito um filme sobre a vida de um polvo, mas acho que eu e o Craig queríamos contar uma história que tivesse significado para nós e reflectisse uma experiência que ambos tivéssemos tido, desde estamos imersos na floresta aquática até aos animais que vimos. É uma história nossa e passa uma mensagem em que ambos acreditamos muito.
Podíamos ter-nos focado nas áreas protegidas, no desaparecimento dos animais marinhos, o que seria uma história mais convencional, seria uma abordagem mais jornalística, mas como já disse antes queria mesmo fazer um filme que chegasse ao coração das pessoas e que não provocasse ódio. Uma história que fosse positiva e trouxesse esperança.
Há quem acredite que o ser humano tem de se afastar da natureza para resolver os problemas que causou e para preservá-la. Também partilha dessa opinião?
Como é que nos afastamos da natureza? É impossível. Nós somos a natureza, sempre que respiramos estamos a interagir com a natureza, sempre que comemos algo estamos a entrar em contacto com a natureza. Não podemos afastar-nos e acho que cada vez mais estamos cientes do quanto dependemos da natureza. Os problemas que temos, os problemas terríveis e desafios com que temos de lidar, como a perda de biodiversidade, não podem ser esquecidos. Nós somos tão dependentes da natureza como um polvo ou uma árvore. Se não preservarmos a natureza vamos ficar extintos, vamos deixar de existir. Temos de cuidar das coisas que nos mantêm vivos.
O vosso documentário deixou muita gente interessada na inteligência dos polvos...
São animais fascinantes. São uma das espécies invertebradas mais complexas e mais inteligentes do mundo. Tal como nós, estão no pico da evolução em termos do que os seus cérebros conseguem fazer. Pensamos igual, só que de diferentes formas e com estratégias biológicas distintas. Acho que se tornaram animais muito populares. No entanto, acho que o ser humano subestima a inteligência de vários animais, e isso também acontece com os polvos.
E no futuro? Quer continuar a contar este tipo de histórias?
Sem dúvida. Estou muito interessada em contar histórias sobre animais, sobre a natureza e em especial sobre a relação entre humanos e a natureza. Acho que o que me perguntou há pouco sobre se nos podemos afastar da natureza para resolver os seus problemas é a questão mais importante que nos temos de perguntar hoje. Quero continuar a contar essas histórias, mas poderá haver histórias mais negras, porque a relação entre os humanos e a natureza nem sempre é bonita, infelizmente.