O cansaço dos chineses com a estratégia "covid zero" levou milhares para as ruas nos últimos dias, com palavras de ordem que vão muito além da insatisfação com uma sucessão de confinamentos que dura há quase três anos. No entanto, é prematuro falar num novo momento Tiananmen. Perguntas e respostas para perceber o que se passa na China:
O que é a estratégia "covid zero"?
É o contrário da estratégia de tentar "viver com o vírus". Enquanto a maioria dos países aposta actualmente na minimização dos efeitos da pandemia, através da vacinação como arma para a redução das mortes e casos graves da doença, a China, onde surgiu o foco inicial da covid-19, no final de 2019, continua a tentar evitar qualquer contágio do vírus através de uma estratégia radical de isolamento compulsivo de doentes e de longos confinamentos de vastas regiões. Xangai, por exemplo, metrópole de 25 milhões de habitantes, esteve fechada durante dois meses este ano.
Ao contrário dos confinamentos portugueses, repletos de excepções à regra, na China os confinamentos mantêm milhões de pessoas presas nos seus apartamentos, muitas vezes com escassas horas de aviso prévio, sem tempo sequer para comprar alimentos e outros bens necessários. O objectivo é a "covid zero", zero casos da doença, e não apenas a prevenção das suas consequências mais graves.
Mas está a resultar?
Apesar de ter sido o epicentro da pandemia, a China manteve um número de casos de covid-19 relativamente baixo durante boa parte destes anos. Em alguns momentos, perto mesmo do número mágico, o zero. Nas últimas semanas, porém, a China tem registado os seus piores números de covid-19 desde o início da pandemia.
Para além de ser uma estratégia falível e insustentável a longo prazo, a opção "covid zero" é também um reflexo de um problema grave: a China sofre com a reduzida eficácia das suas vacinas de produção nacional (Pequim resiste a importar vacinas estrangeiras) e grande parte da população mais idosa não está vacinada, pelo que abandonar a "covid zero" causará sempre, no imediato, uma explosão do número de contágios, casos graves e mortes pela doença.
Em todo o caso, o que se observa um pouco por toda a China é um grande cansaço da população ao cabo de quase três anos de confinamentos e medidas muito restritivas, numa altura em que a maioria dos restantes países vai retomando a normalidade possível. E há, dentro da China, a consciência de que o país está em contraciclo, sobretudo com as imagens do Campeonato do Mundo de Futebol, no Qatar, onde as máscaras deixaram de ser visíveis nas caras dos espectadores.
Como é que começaram estes protestos?
Na semana passada, dez pessoas morreram num incêndio num prédio habitacional na cidade de Urumqi, no Xinjiang, volátil região de maioria muçulmana no noroeste do país. A cidade está há meses com vários bairros em confinamento. Nas redes sociais, apesar da censura governamental, espalhou-se o rumor de que as vítimas foram impedidas de sair do prédio em chamas e que os bombeiros viram o seu trabalho dificultado pelas regras anti-pandemia.
As autoridades chinesas negam veementemente estas acusações e falam num caso clássico de desinformação online, sugerindo até mão estrangeira, mas os desmentidos oficiais não preveniram uma onda de protestos que saltou fronteiras étnicas e chegou a Pequim e Xangai.
Urumqi não foi, contudo, o primeiro grande foco de contestação. Ainda em Novembro, trabalhadores da gigantesca fábrica da Foxconn em Zhangzhou, onde são produzidos os telemóveis iPhone, começaram a desobedecer a ordens de confinamento no complexo industrial, onde foram registados alguns casos de covid-19, e fugiram para as suas terras de origem. Outros envolveram-se em confrontos físicos com as forças de segurança, num raro (mas não inédito) caso de revolta laboral no país comunista.
Qual tem sido a reacção das autoridades?
A vice-primeira-ministra responsável pela resposta à pandemia, Sun Chunlan, declarou esta semana que "a patogenicidade da variante omicron está a diminuir" e que a China tem pela frente "uma nova etapa e missão" no controlo da doença, sinalizando mudanças iminentes.
Como estas palavras vindas de Pequim vão ser recebidas pelas autoridades provinciais e locais, ainda é uma incógnita. Há cidades e regiões a relaxar medidas, como Cantão (outro foco importante de conflito laboral) e Chongqing. Mas o relaxamento tem tido como resultado imediato, inevitável, a subida de casos de covid-19, o que pode levar a uma regressão.
Estes protestos são uma ameaça para o regime chinês?
São, pelo menos, um raro momento de contestação ruidosa ao regime. Ao desagrado com as medidas anti-covid, junta-se uma crescente insatisfação da classe média com o agravamento do custo de vida. Se, nas últimas décadas, Pequim foi compensando a ausência de liberdades políticas e individuais com a melhoria das condições de vida, a desaceleração da economia chinesa e a total paralisação económica de muitas cidades e regiões vieram ameaçar essa fórmula.
O resultado é algo com poucos precedentes. Nas maiores cidades chinesas, nomeadamente a globalizada Xangai, têm-se ouvido palavras de ordem como "abaixo o Partido Comunista Chinês" e "abaixo Xi Jinping". A Universidade Tsinghua de Pequim, alma mater do Presidente chinês, é outro local onde têm sido ouvidas palavras contra o poder comunista. Surge também uma campanha aparentemente orgânica de folhas em branco erguidas durante estes protestos, simbolizando a ausência de liberdade de expressão a que os chineses estão sujeitos.
Estamos a falar contudo de pequenos enclaves, e é muito prematuro falar-se numa contestação generalizada de carácter político. Não é, para já, um novo momento Tiananmen. A reacção das forças de segurança tem sido, ainda assim, musculada: ruas inundadas de polícia, detenções, interrogatórios, telemóveis apreendidos e uma vasta operação de censura nas redes sociais.
Um mês depois da re-entronização triunfal de Xi Jinping para mais uma década no poder, há pelo menos a noção de que a aceitação do regime não é unânime e de que os próximos anos podem não ser tão serenos como o esperado. A cedência no relaxamento de medidas anti-pandémicas é, no mínimo, um reconhecimento oficial da impopularidade da estratégia seguida e da impossibilidade de ignorar o descontentamento das populações. E isso é algo relevante.