Julian Assange — uma pedra no sapato e uma seta no coração
Está em causa o direito à informação, um ataque direto à liberdade de imprensa, e está em causa aquela palavra que tem excesso de uso, mas falta de boas defesas: a democracia.
A notícia tardava em aparecer. Finalmente, no início desta semana, diretores de vários jornais — que publicaram extratos de 250.000 documentos comprometedores para a Administração norte-americana, resultantes das investigações de Julian Assange — pediram à Administração Biden para retirar as acusações contra este.
Recorde-se que os Estados Unidos, durante o mandato do antigo Presidente Barack Obama, já haviam determinado que não processariam o fundador da WikiLeaks, e recorde-se também que, neste momento, está em causa julgar Julian Assange num enquadramento penal que foi criado para punir espiões da Primeira Guerra Mundial e que já existe uma sentença prévia anunciada de 175 anos de prisão.
Estamos a falar do The New York Times, do Le Monde, do El País, da Der Spiegel e do The Guardian e estamos a falar de um homem que viu a sua vida destruída por trazer ao domínio público informação confidencial.
Existe uma má vontade contra Julian Assange da parte de pessoas que, à partida, o apoiariam e dariam valor ao seu trabalho, e refiro-me à esquerda liberal ou centro-esquerda. A razão para essa má vontade passa pela ajuda que Assange deu à eleição de Trump ao divulgar emails de Hillary Clinton e ao acusá-la de instigar a guerra da Líbia, em 2011, enquanto se afirmava defensora da paz. Assange tinha igualmente divulgado que dirigentes do Partido Democrata prejudicaram Bernie Sanders na corrida para a nomeação para as presidenciais em favor de Hillary Clinton.
O que dizer sobre isto?
Existe uma coisa que se deve procurar no jornalismo de investigação: a verdade. Só a partir da verdade poderemos encontrar soluções para os problemas de fundo. Estes problemas antecedem e ultrapassam em muito a eleição de Trump. Não deveria ser este o fator determinante na avaliação que possamos fazer relativamente ao contributo de Julian Assange, ou estaremos a avaliar a utilidade e conveniência da verdade para os nossos propósitos em vez de consagrarmos a descoberta da verdade como um bem em si mesmo. Não foi Assange que tramou Hillary Clinton, foi a verdade sobre Hillary Clinton que tramou Hillary Clinton, e não estamos a falar de assuntos do foro íntimo ou privado. Quando assim acontece, não nos devemos queixar.
O que aqueles jornais agora vieram dizer, e que se impõe, é que obter e divulgar informações sigilosas é parte fundamental do trabalho jornalístico e que criminalizar esse trabalho enfraquece a democracia. Era óbvio, mas precisava de ser dito, e sobretudo pelos responsáveis de alguns dos jornais mais importantes do mundo.
É arriscado afirmar quais são as intenções que movem Julian Assange, mas é seguro dizer quais foram as consequências do trabalho que desenvolveu: tomámos conhecimento de informação fundamental que, de outra forma, nunca conheceríamos. Estamos a falar de detenções extrajudiciais na prisão de Guantánamo, da violação de direitos humanos e do cometimento de crimes de guerra no Iraque e no Afeganistão e de comportamentos da Administração norte-americana tendentes à perpetuação desses conflitos. Estamos a falar de informação séria e rigorosa que contraria a visão benigna e simplista do mundo, na qual muitos gostam de acreditar. Nesse mundo cor-de-rosa estamos sempre do lado dos bons, aqueles que fazem guerras para salvar as pessoas e para espalhar a democracia e o respeito pelos direitos humanos. Isto faz lembrar aqueles tempos em que se anunciava a propagação da fé para invadir e anexar territórios.
Jornalista, hacker ou espião, Julian Assange tem traços de herói e incomoda que seja tratado como poucos criminosos foram. É também um mártir. Viveu sete anos na Embaixada do Equador em Londres e, enquanto aguardou decisões relativamente à sua extradição, viveu em condições miseráveis e privado da sua família.
É por isso que a notícia que tardava em aparecer é uma boa notícia. Era o mínimo e seria desejável que também os jornais portugueses se associassem neste pedido. Está em causa o direito à informação, um ataque direto à liberdade de imprensa, e está em causa aquela palavra que tem excesso de uso, mas falta de boas defesas: a democracia.
Julian Assange disse que a Internet não deve saber tudo sobre nós, mas que nós devemos saber tudo sobre a Internet. Este é um princípio na Internet e na vida. Será que queremos abdicar deste direito fundamental, punir quem o defendeu e apoiar quem nos oculta informação gravíssima? Somos livres para fazer essa escolha, mas não estaremos livres das consequências de a fazer.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico