Um Kit de Deteção de “Tretas” para um mundo infestado de desinformação

Dez questões-chave para lidar com a quantidade colossal de (des)informação que circula, de modo a sentir-nos seguros com uma decisão crucial: aceitar ou rejeitar uma afirmação nova radical.

Uma das qualidades associadas à ciência é a sua ênfase na objetividade. Para tal, entre outras ferramentas, socorre-se da linguagem mais concisa criada pela mente humana, a matemática. Podemos assim esperar que os matemáticos profissionais sejam das pessoas mais céticas do mundo. Num dos seus livros, Arthur Benjamin, professor no Harvey Mudd College, brinda-nos com uma série de questões-chave para lidar com a quantidade colossal de (des)informação veiculada pela TV, internet, jornais e livros, de modo a sentir-nos seguros com uma decisão crucial: aceitar ou rejeitar uma afirmação nova radical. Devidamente adaptadas, seguem-se as perguntas que compõem o que Benjamin designa humoristicamente de Kit de Deteção de Tretas.

1 – A fonte da afirmação é de confiança?

Num discurso proferido em julho de 2021, no Utah, o norte-americano Ron DeSantis afirmou de forma séria que não era saudável as crianças de seis anos de idade estarem todo o dia sentadas na escola com a face coberta por uma máscara [para prevenir a infeção pelo vírus SARS-CoV-2], contrariando abertamente a recomendação dos Centers for Disease Control and Prevention dos EUA feita dias antes.

Quem é Ron DeSantis? Um médico, um biólogo, um investigador conceituado ou um perito em saúde? É perito, sim, mas na área da política. Trata-se do atual governador (republicano) da Flórida, ex-congressista, formado em… história e direito.

2 – A fonte em causa costuma fazer regularmente afirmações radicais?

Quando um certo indivíduo é conhecido por numerosas afirmações extraordinárias, não devemos presenteá-lo com a perceção ou elogio de ser um iconoclasta. É uma questão de quantidade: os genuínos grandes pensadores também vão além dos dados nas suas conjeturas criativas, porém, não demasiado além nem demasiadas vezes.

Thomas Gold foi um professor de astronomia na Universidade de Cornell (EUA) que ficou famoso por algumas ideias radicais, entre elas a de que o petróleo não é um produto fóssil, de origem biológica, mas um material que existe acumulado no núcleo da Terra desde a sua formação, sendo “transpirado” ao longo do tempo através das rochas porosas acima do núcleo. Também propôs que vive no interior da crosta terrestre, a elevadas temperaturas e pressões, uma biosfera (bacteriana) com uma massa comparável à da biosfera presente na superfície do planeta. Essa biosfera profunda e quente estará disseminada pelos planetas e luas do cosmos, alimentada pela energia dos processos geológicos, sem necessidade do calor emitido pelas estrelas. Existirão, assim, inúmeros planetas solitários com vida no subsolo.

Houve mais especulações… Não obstante ter sido um cientista respeitado, podemos interrogar-nos sobre até que ponto as suas ideias refletem um padrão de pensamento marginal, que frequentemente ignora ou distorce dados relevantes. É inevitável – ou deveria ser! – encarar Gold e muitos outros como excêntricos o bastante para temperar o respetivo discurso com uma boa dose de ceticismo.

3 – A afirmação foi verificada por outra fonte?

Habitualmente, os pseudocientistas afirmam coisas não verificadas ou então atestadas por uma fonte ou entidade que integra o círculo de crença de quem profere a afirmação. Tentemos, portanto, descobrir quem certificou a afirmação polémica.

Se alguém disser que não há consenso entre os cientistas de que o aquecimento global antropogénico seja real, três questões devem assaltar o nosso espírito: qual é o inquérito/estudo que suporta tal afirmação? Quem o realizou? Os seus resultados são reproduzidos por outros inquéritos confiáveis?

4 – Até que ponto a afirmação encaixa no que sabemos sobre o funcionamento do mundo?

Qualquer afirmação extraordinária deve ser sempre ponderada num contexto alargado, de modo a avaliar como se “aguenta”.

Os negacionistas da evolução (por seleção) natural argumentam que o conceito é demasiado simplista face à complexidade da vida, e que a sua aparente perfeição não pode ter emergido ou ser justificada pelo mero acaso. Então, como entender a resistência que as bactérias adquirem gradualmente aos antibióticos? Se foram desenhadas, num passado remoto, com as características certas e fixas para sobreviver nas condições ambientais da altura, por que razão certas bactérias não se extinguiram depois de inventarmos a ampicilina?

5 – Existem evidências ou estudos que contrariam a afirmação, ou apenas estão disponíveis dados abonatórios?

Um dos mais discutidos enviesamentos do raciocínio humano é o da confirmação, ou seja, a tendência natural para prestarmos atenção ao que confirma e ignorarmos o que desmente as nossas crenças principais. É um viés poderoso e muito difícil de controlar, mas estar consciente dele é uma vantagem importante. Está por detrás da “obsessão” da ciência pela verificação, reverificação e replicação exaustivas.

Nesta época que vivemos é praticamente impossível não encontrar informações que embaracem as nossas crenças mais acarinhadas. Sou um evolucionista convicto, todavia, procuro ativamente e deleito-me a refletir sobre novos dados científicos “maus” para a inspirada teoria de Darwin. Tornam-me mais sábio.

6 – A maioria dos dados de investigação aponta na direção da afirmação controversa, ou numa direção diferente?

O conceito de evolução tem sido cimentado por uma convergência de resultados de diversas linhas de investigação independentes; investigações genéticas, paleontológicas, biológicas, ecológicas ou sociais. Os criacionistas ignoram convenientemente “toneladas” de bits a favor de uma história evolutiva da vida, focando-se e realçando supostas anomalias ou fenómenos pontuais ainda por explicar.

Foto
A maioria dos portugueses não consegue identificar notícias falsas EPA/ETIENNE LAURENT

7 – Quem faz a afirmação seguiu normas válidas de raciocínio lógico e de investigação criteriosa?

O médico britânico Andrew Wakefield publicou no final dos anos 1990 os resultados de uma pesquisa que sugeria uma ligação entre o autismo e a vacina combinada anti-rubéola, sarampo e papeira. Mais de dez anos depois, os autores de um texto no British Medical Journal blindaram as provas de que Wakefield distorcera os historiais clínicos dos pacientes, num tempo em que o médico inglês trabalhava como consultor de uma firma de advogados que tentava processar os fabricantes da vacina tríplice. Wakefield defendeu que não se tratou de uma grosseira falsificação de dados, mas sim de uma utilização seletiva de informação (o estudo envolveu somente 12 crianças e a maioria dos dados proveio das observações e opiniões [!] dos pais das crianças), desculpável com o viés de confirmação.

Uma investigação séria implica o cumprimento de regras, hoje bem claras e aceites, que asseguram a legitimidade intelectual das conclusões. O mais relevante nesta história não é a intencionalidade ou falta dela no erro de Wakefield. O mais crucial é o facto de milhares de pessoas, mesmo sabendo do erro, alegarem que várias vacinas podem provocar autismo.

8 – A afirmação radical oferece uma explicação alternativa ou limita-se a negar a explicação existente?

É uma “arma” muito usada por quem debate ideias sem argumentos sólidos: criticar o adversário, não clarificando aquilo em que o próprio acredita de modo a evitar a crítica.

Os céticos em relação ao Big Bang como origem do universo, por exemplo, ignoram a forte convergência de dados neste modelo cosmológico; salientam ad nauseam as poucas lacunas do modelo mais consensual enquanto fogem a uma visão alternativa, credível, que absorva um elevado número de evidências a seu favor.

9 – No caso de a afirmação consistir numa nova explicação, permite compreender tantos fenómenos como a “velha” explicação?

Um caso exemplar é a ideia de que a sida é um produto do modo de vida e não do vírus da imunodeficiência humana (VIH). Os céticos da causalidade VIH-sida fingem desconhecer a inequívoca correlação entre o aumento de hemofílicos doentes e a introdução acidental do VIH nos bancos de sangue, ao mesmo tempo que não conseguem rebater com a sua “teoria” o facto de uma larga proporção de consumidores de drogas recreativas ou pessoas malnutridas não contrair a sida; ou existirem indivíduos bem alimentados e heterossexuais que desenvolvem a doença (por exemplo, técnicos envolvidos em acidentes em laboratórios que lidam com o VIH).

10 – As opiniões ou crenças de quem afirma e de quem lê ou ouve afetam a aceitação da frase extraordinária?

Em “99,9%” das situações, a resposta é um enfático “sim!” Por esse motivo, sempre que o leitor do PÚBLICO se depare com uma afirmação radical e as nove questões anteriores não forem suficientes para se sentir seguro quanto à veracidade/validade da afirmação, partilhe e discuta-a com alguém que muitas vezes discorda de si.

Partilhe também este kit. Bom proveito!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 7 comentários