Há seis anos na estrada, Enrique vai agora com o seu burro a caminho de Fátima
Não pede nada, mas poucos serão os sítios de onde sai sem receber e dar algo em troca. A caminhada deste peregrino não pode ser contabilizada em semanas ou meses, mas sim pelos momentos que vive.
Faz questão de seguir caminho sem telemóvel, relógio ou mapa, apenas com a mochila e o bordão típicos de um peregrino. Dorme quase sempre à porta de igrejas – diz que são “hotéis de milhares de estrelas”, por conta da vista para o céu — e nunca passou frio ou fome. Vai comendo e bebendo o que lhe dão, na certeza de que o que vai recebendo ainda dá para compartilhar com aqueles com os quais se vai cruzando. Enrique Balsera, conhecido por ser o peregrino mais famoso de Espanha – mais recentemente, o alcance do título mudou para a escala mundial —, está a caminho de Fátima, acompanhado do Espírito Santo, o burro que há três anos e meio vai com ele nesta missão de visitar lugares sagrados. Roma será o destino seguinte, depois de cumprida esta viagem até ao santuário português e que, tal como todas as que vem encetando nos seis anos que já leva de peregrinação, não tem data, nem hora marcada para terminar.
É o próprio Espírito Santo, parado à frente dos sítios onde se vai alimentando e pernoitando, quem acaba por o denunciar. O PÚBLICO encontrou-os na Vigia, no concelho de Vagos, enquanto se abrigavam da chuva que, naquela manhã, caía de forma incessante. Enrique Balsera correspondia aos apelos dos clientes que entravam na pastelaria e lhe pediam para tirar fotos. Viria a confessar-nos, pouco depois, que não lhe incomoda a captação de imagens, desde que as pessoas tenham o cuidado de se apresentar antes de tirar fotos. Foi o que fizemos, exactamente antes de anunciarmos que éramos jornalistas. O “peregrino mais famoso do mundo” aceitou conversar e partilhar a sua história, mas sem o peso e o formalismo de uma entrevista. E sem pressas, pois essa é a forma como faz questão de viver e que gostaria de passar a todos com os quais se vai cruzando. “Se vais muito depressa, não vês os sinais, as coisas passam ao teu lado e nem reparas”, adverte.
Natural de Peñarroya-Pueblonuevo, município pertencente à província de Córdova, Enrique Balsera, de 57 anos, encontrou um outro sentido para a vida depois de ter estado um ano sem poder caminhar, na sequência das complicações sofridas depois de um acidente de viação. De repente, o “homem ambicioso”, “empresário” e “piloto de testes da Audi e da Lamborghini” percebeu que de nada valia “ter”, quando estava impossibilitado de andar. Crê que foi uma forma de Deus o “corrigir” — nunca um castigo —, levando-o a perceber que o importante na vida é “saber sentir”. Quando voltou a caminhar, decidiu iniciar a sua peregrinação por lugares santos. Já visitou quatro: Fátima, Santiago de Compostela, Caravaca de la Cruz e São Turíbio de Liébana — estes três últimos em Espanha.
Enrique Balsera já tinha despertado para a “magia” de ser peregrino antes de fazer a cirurgia que o deixou sem poder caminhar. Rumou a Santiago de Compostela, acompanhado da mulher e das duas filhas, e percebeu o poder que o caminho tem para aqueles que o ousam percorrer. Hoje, encara-o como uma missão, na certeza de que neste caminho cabem todos as rotas peregrinas que já fez e aquelas que ainda há-de fazer. Para chegar a Roma, estima necessitar de “uns quatro anos”. Pode parecer muito, mesmo sendo a caminhar, mas o que está em causa “não é uma corrida”, realça o peregrino, que gosta de parar, conversar, dar e receber — joga com as palavras e declara que não é um “turigrino”.
Confessa que conseguiu três coisas na vida desde que encetou esta nova caminhada: saúde, tempo e liberdade. “Vivo com a sociedade, mas fora do consumismo”, ressalta, já depois de nos ter contado que faz questão de interromper as peregrinações por altura do Natal para passar a quadra festiva com a família — também o fez quando foi avô, para ir ver o bebé e a filha a Málaga. Ainda não sabe como vai ser este ano, pois sente que precisa de tempo para estar em Fátima. “Quando lá estive, a minha mãe morreu. Estar em Fátima é uma forma de estar com a minha mãe”, testemunha.
Sem telemóvel, nem redes sociais — há um grupo de Facebook com o seu nome, mas é gerido por seguidores —, vai falando com a família quando alguém lhe cede um telemóvel e faz a ligação. Enrique não abdica desse princípio de “não pedir nada” — a única excepção, conta, é se precisar de pedir “água ou pão” — e sempre que recebe gosta de partilhar. Naquela manhã, tinha sido presenteado com uma peça em madeira, que fez questão de oferecer, depois, à dona da pastelaria onde se abrigou da chuva.
Anunciar que vem por bem
Há alguns rituais que o peregrino espanhol gosta de cumprir de cada vez que chega a uma nova localidade. “Primeiro, dou graças e, depois, vou à polícia dizer quem sou e anunciar que não venho pedir, nem roubar”, conta. E admite: “Eu próprio, se visse alguém assim a passar na minha terra, podia ter suspeitas.” Sempre que o convidam para tal, senta-se à mesa ou ao balcão. As noites são passadas às portas das igrejas, com uma tenda, e, se o tempo estiver muito mau, pode procurar abrigo numa freguesia — em Aveiro, por exemplo, tinha estado alojado no seminário. A higiene — faz questão de tomar o seu duche e fazer a barba — é feita quase sempre nas corporações de bombeiros.
Garante que nunca teve problemas, nem se sentiu ameaçado. “A vida é feita de energia e se dás energia positiva é essa que vem até ti”, garante o peregrino, que diz não ter uma religião específica — acredita num Deus que vive em cada um de nós. Já lhe aconteceu ser, temporariamente, acompanhado por outros peregrinos, ideia que não rejeita desde que aceitem viver de acordo com os seus princípios, nomeadamente no que toca a respeitar essa regra de não pedir. Enrique Balsera recusa ver a sua missão e imagem a serem usadas com fins comerciais.
Um dos bens mais preciosos que leva na mochila são os pequenos cadernos que vão sendo preenchidos pelas pessoas que se aproximam dele. Enrique só põe a data. A mensagem fica por conta interlocutor, explica, antes de nos desafiar a inaugurar as páginas do dia 22 de Novembro de 2022. No total, são já mais de 40 livretes preenchidos, contabiliza, antes de nos exibir alguns dos escritos deixados por bispos, bombeiros, crianças, etc. Há uma frase que encaixa na perfeição no testemunho que nos estava a passar: “A vida é feita de momentos e não de anos.”
Às mensagens de alento somam-se também as ofertas de roupa, de sapatos e agasalhos. “Não preciso comprar nada”, afiança Enrique, antes de nos mostrar as botas que tinha recebido dias antes, depois de as que trazia calçadas terem ficado estragadas. Também tinha uma sweatshirt nova, por cima da camisa branca, peça que considera ser de uso obrigatório nas suas peregrinações — “é sinal de pureza”, explica. Ao pescoço traz uma cruz em madeira que lhe foi oferecida num seminário franciscano, ou seja, da ordem de S. Francisco de Assis, que abdicou da riqueza e fez votos de pobreza. “Não me falta nada. As pessoas vão-me dando aquilo que eu preciso”, atesta Enrique.
Idêntico carinho tem merecido o fiel companheiro que lhe foi oferecido numa festa do vinho, em Castellón, por “um pai e um filho”. Espírito Santo anda com um cachecol do Deportivo da Corunha ao pescoço — em Portugal, o azul e branco vai dando azo a associações ao FC Porto — e uma vieira (símbolo universal do Caminho de Santiago) na cabeça. Alimenta-se da erva que vai encontrando pelo caminho e, volta e meia, é brindado com uma ou outra cenoura.
Portugal tem, no entender do “peregrino mais famoso do mundo”, duas grandes qualidades: “é uma terra de Deus, porque tem fé” e “um povo peregrino, que andou nos Descobrimentos, e sabe acolher”, avalia o homem que descobriu que as coisas mais valiosas “são grátis”. Não esconde que, no passado, chegou a gastar milhares de euros a ver concertos por essa Europa fora, mas hoje, quando atravessa a natureza, é brindado “com uma verdadeira sinfonia gratuita”. É essa a mensagem que quer partilhar com as pessoas que se vão atravessando no seu caminho, na esperança de que cada uma encontre “paz interior”. “Não adianta andar a rezar pelo fim da guerra na Ucrânia, se não estivermos em paz, connosco e com os outros”, sustenta o homem cuja história pode, em breve, vir a dar um livro. A narrativa, segundo conta, está já a ser redigida por um jornalista espanhol.