Aviões com emissões zero? É possível, mas falta nova tecnologia
A indústria da aviação tem um plano para atingir a neutralidade carbónica que deixa os ambientalistas reticentes. Mas a nível regional, os aviões eléctricos poderão causar mudanças mais rapidamente.
Andar de avião ou não andar de avião? A pergunta é colocada cada vez mais por quem tem preocupações ambientais e questiona viajar à custa dos combustíveis fósseis, responsáveis pelas alterações climáticas. Embora várias optimizações a nível da aviação tenham feito diminuir nas últimas décadas as emissões de dióxido de carbono (CO2), o aumento do número de passageiros em todo o mundo mais do que compensou esse avanço. Em 2019, a aviação comercial atingiu o pico de 4,56 mil milhões de passageiros e as emissões desta indústria foram de 920 milhões de toneladas de CO2. Ou seja, 2,1% de todo o CO2 emitido por actividades humanas naquele ano veio da aviação. Por comparação, seis anos antes, as emissões da aviação eram de 707 milhões de toneladas de CO2.
Apesar da quebra radical em 2020 no volume de negócios da aviação por causa da pandemia, espera-se que o sector da aviação volte aos valores anteriores até 2025 e continue a escalada. Há estimativas que apontam para 10 mil milhões de passageiros em 2050. Essa é uma das razões para a construção do novo aeroporto de Lisboa. Mas numa altura em que a humanidade tem uma margem cada vez menor para evitar os cenários mais dramáticos das alterações climáticas, a tendência expansionista do sector assusta os ambientalistas.
Por isso, há uma pressão para a aviação internacional reduzir as suas emissões de CO2 e de outros gases com efeito de estufa. No início de Outubro, numa assembleia da Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, sigla em inglês) — agência das Nações Unidas — 184 estados-membros e 57 organizações “adoptaram um objectivo aspiracional colectivo de longo prazo para alcançar a neutralidade das emissões de carbono em 2050”, lê-se num comunicado da ICAO.
Compensar emissões
A curto prazo este objectivo passa por três estratégias. Duas delas são a optimização ainda maior da aviação para diminuir as emissões de CO2 e a produção em larga escala dos combustíveis de aviação sustentáveis, como o hidrogénio verde. Há ainda um terceiro passo: um esforço mundial para compensar as emissões de dióxido de carbono antes que as novas estratégias tecnológicas sejam postas em prática.
Para isso, o ICAO adoptou em 2016 um mecanismo de mercado global de carbono: o Esquema de Redução e de Compensação de Carbono para a Aviação Internacional (CORSIA, sigla em inglês). Este esquema prevê “estabilizar as emissões líquidas de CO2 da aviação civil usando programas de compensação”, lê-se num folheto informativo da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, sigla em inglês). O patamar acima do qual as companhias aéreas têm de fazer essas compensações será de “85% em relação às emissões de 2019”, o que equivale a 500 milhões de toneladas de CO2, informa ao PÚBLICO Yue Huang, gestora de políticas e da transição energética da IATA.
A vantagem da CORSIA é a organização em um só esquema de compensações algo que antes estava espalhado por vários modelos, numa manta de retalhos que punha em causa a sua seriedade. Por outro lado, a CORSIA garante que as licenças de carbono usadas provêm de projectos com qualidade, sejam de reflorestamento ou outros. Assim, garante-se que aqueles projectos são sérios, permanentes — a floresta plantada é conservada para sempre — e que a mesma licença não é usada mais do que uma vez.
A CORSIA entrou em vigor em Janeiro de 2021 e está programada até 2035, altura em que se espera que as novas tecnologias estejam a funcionar e não seja mais necessário haver este tipo de compensações. Em Janeiro de 2022 já havia 107 estados, entre os quais Portugal, que integravam a CORSIA. Esta mudança já está a ter impacto financeiro. No ano passado, o jornal britânico Financial Times dava conta de que o custo dos créditos de carbono estava a aumentar. Pegando nos relatórios da TAP dos últimos anos é possível verificar que enquanto os preços de cada licença de carbono oscilavam entre os 15,3 e 33,4 euros em 2020, no primeiro semestre de 2022 oscilaram entre os 58,3 e 96,93 euros.
Espera-se que este aumento pressione a indústria a acelerar a transição energética. “Para lá do curto prazo, o transporte aéreo vai necessitar de descarbonizar completamente, e isso significa zero emissões dos aviões e uma nova confiança nas energias limpas”, disse recentemente Juan Carlos Salazar, secretário-geral do ICAO, num encontro promovido pelo Grupo de Acção do Transporte Aéreo, que representa todos os sectores da indústria.
Taxas cumulativas
No entanto, os ambientalistas fazem outras contas. “Temos um grande potencial para o crescimento das emissões do tráfego aéreo, quando estamos numa altura em que queremos diminuí-las”, adianta Pedro Nunes, especialista em política pública da associação ambientalista Zero. O especialista aponta na maior eficiência dos aviões, a nível da poupança no uso dos combustíveis e das rotas escolhidas, e os novos combustíveis sintéticos, como duas estratégias importantes e eficazes para a redução das emissões.
Mas essas tecnologias não vão chegar para atingir a neutralidade carbónica e Pedro Nunes é reticente em relação a um sistema de compensações, que depende frequentemente de processos que duram dezenas de anos, como é o caso da reflorestação. “O planeta não tem essas dezenas de anos para compensar as emissões”, afirma. Por isso, o ambientalista problematiza o projecto de um novo aeroporto em Portugal. “É preciso fazer contas sobre o que é que essa infra-estrutura poderá influenciar para o aumento das emissões”, diz, acrescentando que é necessário “não planear um aeroporto que tenha tanta capacidade”.
Outra ideia que partilha é a aplicação de uma taxa cumulativa para dissuadir quem viaja mais. “Um por cento da população mundial é responsável por 50% de todas as emissões da aviação”, relembra. Para contrariar isto, seria necessário “instituir uma taxa progressiva que seja proporcional às emissões dos passageiros”.
Já em relação à taxa de carbono de dois euros que cada passageiro tem de pagar desde 1 de Julho de 2021 em Portugal, Pedro Nunes caracteriza-a de “brincadeira”. A taxa é uma contrapartida para as emissões poluentes da aviação e já rendeu cerca de 27 milhões de euros para o Fundo Ambiental estatal nos primeiros 12 meses da sua aplicação, mas o ambientalista argumenta que ela não vai dissuadir ninguém de apanhar o próximo avião.
Baterias eléctricas
Apesar da promessa de aviões eléctricos estar distante da aviação internacional, é possível vermos grandes mudanças na aviação regional causadas por esta nova tecnologia. Alexandre Alves, administrador na área comercial da Sevenair, empresa de aviação portuguesa dedicada à aviação regional e que trabalha em vários países, espera chegar ao fim da década já com três aviões híbridos com uma bateria eléctrica.
“Assinámos em Outubro passado uma carta de intenções para a aquisição de três aeronaves com a possível aquisição de mais três”, diz ao PÚBLICO. Os aviões estão a ser desenvolvidos pela Heart Aerospace, uma empresa sueca. O projecto começou por ser um avião totalmente eléctrico para 19 pessoas, mas transformou-se devido às limitações das baterias eléctricas, que pesam toneladas. Para terem mais autonomia, elas ficam demasiado pesadas. Por isso, um sistema híbrido permitiu o melhor dos dois mundos. O avião “evoluiu para algo um pouco diferente: o ES-30, uma aeronave de 30 lugares, não será 100% eléctrica, será híbrida”, diz o empresário.
O avião poderá ser 100% eléctrico durante 400 quilómetros com a ocupação de 30 pessoas. E à medida que o número de passageiros desce, a sua autonomia cresce. “O avião vazio tem uma autonomia de 1000 quilómetros”, explica Alexandre Alves, o que permite fazer um voo de reposicionamento, levá-lo para um país distante e trabalhar lá. “O combustível só será usado se for necessário”, assegura o administrador, como em casos urgentes.
O preço de cada avião deverá rondar os 12 milhões de euros, diz Alexandre Alves. O administrador espera tê-los na mão já em 2028 e acredita que esta nova geração possa ter impacto na aviação regional. “A manutenção geral é menos 50 a 60% do que num avião tradicional”, adianta. “O combustível é uma coisa muito suja que cria muitos problemas.” Tudo isto poderá fazer baixar o preço dos bilhetes e produzir um efeito multiplicador: “Acho que o mercado vai abrir ainda mais.”
*Este é o primeiro de uma série de trabalhos sobre o novo aeroporto no momento em que se aproxima a tomada de uma decisão estratégica para o país.