Na voz de Morgan Freeman, o Mundial 2022 é um paraíso na Terra
O actor norte-americano que já foi Deus e Nelson Mandela foi o convidado-surpresa da cerimónia de abertura, que não se desviou um milímetro da narrativa oficial dos organizadores locais e da FIFA.
A primeira voz que se ouve – e que se vai ouvir ao longo de toda a cerimónia – é a de Morgan Freeman, que já foi a voz e o rosto de Deus no cinema. A voz grave, pausada e tranquilizadora do actor norte-americano enche o enorme estádio (e o mais caro de todo o Mundial), que pretende mimetizar uma tenda beduína, convoca o mundo para o Qatar e para aquilo que o pode unir, o futebol. Tudo o que aconteceu antes, tudo o que conduziu a este dia, ficou fora da cerimónia de abertura do Mundial 2022. Não se esperava que fosse diferente.
Durante pouco menos de meia-hora, em jeito de aperitivo para o jogo de abertura entre o Qatar e o Equador, desfilou pelo relvado do Al Bayt a versão oficial deste Mundial, a versão dos seus organizadores locais e da FIFA, a alternar entre o passado e o presente, sempre com o mantra da união, da diversidade e do bem da humanidade. Foi essa a mensagem que Morgan Freeman, que também foi Nelson Mandela no cinema e porta-voz em 2010 da candidatura norte-americana a este Mundial do Qatar, foi passando, em diálogo com Ghanim A-Muftah, um jovem qatari que nasceu com síndrome de regressão caudal.
É um diálogo que se prolonga durante alguns minutos em inglês, sobre esta “grande tenda em que todos nós vivemos” chamada planeta Terra e a “grande tribo humana”, diz Freeman na sua voz grave. “O que nos une aqui neste momento é muito maior do que o que nos divide”, reforça Freeman, que, depois, pergunta como “podemos fazer com que dure para lá do dia de hoje”. “Com tolerância e respeito podemos viver juntos numa grande casa”, responde o jovem qatari.
A versão oficial do Mundial 2022 também nos apresenta os sons da k-pop, com a voz de Jungkook, membro dos BTS, a cantar um dos hinos do Mundial com o nome “Dreamers” (“Sonhadores”) ao lado de um cantor local. E também nos oferece um regresso breve ao passado dos Mundiais, com o desfile das mascotes passadas (o Willie do Inglaterra 66, o Naranjito do Espanha 82, o Pique do México 86…) e os respectivos hinos (versões de Shakira e Ricky Martin, o mais aplaudido), e um desfile de camisolas gigantes das 32 selecções, com um apontamento sonoro para cada uma delas – “Allez les bleus” para a França e por aí fora.
E para mostrar que o Qatar não é um país sem tradição futebolística, também foram exibidas imagens de arquivo do Emir do Qatar a jogar futebol, talvez nos anos 1970 ou 1980. Só se ouviram aplausos com estas imagens. E também só se ouviram aplausos quando discursou o Emir, em árabe, sobre os “investimentos feitos para o bem da humanidade” e a vontade de “mostrar ao mundo boa vontade, futebol espectacular, pessoas de diferentes raças, nacionalidades e orientações, de todos os estados e continentes”, terminando com um “bem-vindos” em inglês. De fora do discurso ficaram, claro, todos os problemas associados a este Mundial.
Num princípio de noite fresco (para os padrões do Qatar) e sem necessidade de ter a cobertura fechada e o ar condicionado no máximo, as bancadas estavam preenchidas por adeptos de diferentes selecções, não apenas as que iriam competir no jogo de abertura – alguns portugueses chegaram mesmo a ser focados na transmissão do evento. De todos, os que faziam mais barulho eram os equatorianos, que não queriam apenas ser convidados para a festa local.
Até ao jogo, Gianni Infantino, o grande pacificador, ainda pegou no microfone para também ele dar as boas vindas e dar início ao “espectáculo”. “Vamos celebrar o futebol porque o futebol une o mundo”, disse o presidente da FIFA. Depois, vieram as equipas, rolou a bola e começou o espectáculo.