Em Doha há um gato escondido com rabo de fora
Quando um engano na atribuição de uma chave termina com um jornalista a irromper, confiante e inocente, pelo quarto de uma jovem americana que dorme profundamente, trata-se de um acaso infeliz. “Peço imensa desculpa, deve ter sido engano deles. Volte a dormir, que eu vou embora”, foi a forma de suavizar o susto de morte, logo pela manhã. Desta vez, foi um português a tramar uma americana num Mundial. 20 anos depois, Coreia/Japão está saldado.
Horas depois, o atraso de um autocarro e a impaciência de um jornalista levam-no a decidir andar a pé e, com isso, a descobrir um “gato escondido com rabo de fora”. E esse já é um acaso feliz.
O Qatar quer que um dos pontos centrais de concentração de adeptos seja a fan zone no passeio marítimo da zona baixa da cidade.
Virado para o local onde tudo se passará há um edifício gigante. Os milhares de adeptos vão poder ver uma fachada de vidro que muda de cor a cada três segundos. É quase uma arrogância – a boa arrogância – de um edifício de ar luxuoso e imponente, sobretudo à noite.
Depois de encerrada a entrada no metro mais próximo e de atrasos no autocarro, a decisão de ir a pé até à estação de metro seguinte leva-me a contornar o tal edifício. Nas traseiras, zona de acesso desnecessário, há entulho. E gruas. E paredes inacabadas. Em rigor, um edifício inacabado.
“Que coisa estranha, aqui não deveria ser tudo novo e bonito?”. Era momento de fotografia e vídeo, que por pouco não foi interrompido por um funcionário de colete fluorescente, dos milhares que se dividem pela cidade e pelas estações. Para ajudar – e controlar.
“O que é que está a filmar? Aqui é para circular, circular...”, disparou, num misto de curiosidade e aviso – só isso, que não era autoridade policial.
Na zona moderna da cidade há vários edifícios por acabar, dois deles nesta zona premium. E se mesmo na zona nova isto acontece, como pode não acontecer quando se sai do centro?
A capital do Qatar é um contraste tremendo entre as casas bege monocromáticas e os arranha-céus modernos que fazem subir infinitamente o olhar de quem os vê de perto.
O que é que parece novo, cheira a novo e reluz como novo? Doha. E o que é que parece antigo, cheira a antigo e destoa como antigo? Doha também.
São quilómetros de bairros seguidos, todos da cor da areia, que destacam o quanto o Qatar, com polícias ou funcionários de apoio, quer mostrar ao mundo apenas o que tem de melhor. E tem mesmo.
Mas se tentar esconder a exploração a trabalhadores é difícil, tentar fazê-lo no contexto de um edifício destes já é só inútil. Ficou o gato – e bem bonito que é – com o rabo de fora.