O dia de um estudante atleta “tem 25 horas” — e põe a saúde mental à prova
Ser estudante atleta é viver entre um curso superior e o desporto de sonho. Conciliar estas duas actividades pode ser “difícil” e “complicado”, especialmente ao nível da saúde mental.
Do desporto ao ensino superior, Telma Franco, Camila Rebelo e Pedro Casinha dão tudo o que têm para conseguirem conciliar estas duas realidades. Durante as manhãs são atletas de alta competição, focados em chegar em primeiro à meta; à tarde, são estudantes, concentrados em terminar o curso que sempre desejaram. Nem sempre é simples gerir os treinos com as aulas, os exames com as competições, o que pode ter repercussões na saúde mental. Mas, realçam, “quando se gosta muito do que se está a fazer, torna-se muito mais fácil”, observam.
Telma Franco apaixonou-se pelo karaté desde criança. Com um ginásio ao lado do café dos avós, a jovem de 19 anos começou cedo a admirar aquela arte marcial. Aos três anos, já colocava em prática os primeiros movimentos e foi ainda em criança que percebeu que o karaté era importante na sua vida. Por isso, desistiu de outros desportos que praticava para se dedicar a ele a 100%. Nunca deixou de praticar esta arte marcial, nem mesmo depois de entrar para o ensino superior, através do contingente de praticante desportiva de alto rendimento. Actualmente, frequenta o segundo ano da licenciatura em Gestão na Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), mas não deixa de treinar.
“Quando entrei para a faculdade, foi algo desafiante. O ensino superior é uma experiência totalmente diferente, o primeiro ano é para nos habituarmos a novas vivências e é sempre mais complicado. Gerir o tempo entre o curso e o karaté foi a parte mais desafiante, mas à medida que o tempo foi passando começou a ser mais fácil porque também fui aprendendo a gerir o tempo da melhor forma”, refere Telma, em conversa com o P3.
Conciliar as aulas com os treinos no Clube de Karaté da Maia exige um esforço acrescido: “De manhã tenho aulas, por isso, geralmente não treino, excepto quando estou em época de preparação para os campeonatos nacionais — nessa altura, treino das 7h às 8h e só depois é que vou para a faculdade. Treino também ao fim do dia, durante duas horas, todos os dias, e faço exercícios técnicos e físicos. No fundo, trabalho todas as componentes que são necessárias para a competição”. Os fins-de-semana são também sinónimo de muito trabalho. “Normalmente, tenho provas ou treinos da Selecção Nacional de Karaté, o que também ocupa bastante o meu tempo”, descreve a actual campeã nacional universitária da modalidade de kata, em karaté.
Segundo dados da Federação Académica de Desporto Universitário, na última época estavam inscritos 7565 estudantes atletas nas 46 modalidades que têm provas. Como Telma, também Camila Rebelo faz parte deste número e partilha os mesmos desafios da karateca. Em 2021, a jovem de Coimbra conseguiu entrar, através do contingente de estudante atleta, no ensino superior e concretizou algo com que sonhava desde criança: ser médica. Está a frequentar o segundo ano do mestrado integrado em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, mas não deixou de lado uma outra paixão que alimenta desde os dois anos: a natação. Conciliar estas duas realidades “é difícil”, assume a jovem de 19 anos.
“Como nadadora tenho muitos treinos, o que me impede de frequentar as aulas teóricas. Actualmente, só consigo ir às aulas práticas, que são as de carácter obrigatório. E fica ainda mais difícil quando estou em época de exames, o que acontece em Janeiro, pois é nessa altura que estou sempre fora para realizar estágios, o que significa que tenho de faltar aos exames. Mas com alguma organização vou conseguindo fazer tudo”, menciona a vencedora de duas medalhas de ouro nos Jogos Mediterrâneos de 2022.
Convocada para a Selecção Nacional de Natação desde 2016, Camila vê os seus dias bastante ocupados entre os treinos no Centro Olímpico de Piscinas Municipais de Coimbra e as aulas práticas de Medicina. “Levanto-me todos os dias às 6h, para estar na piscina às 7h e normalmente treino até às 9h30. Tenho uma pausa antes do almoço e é aí que estudo e recupero as energias para depois continuar com mais um treino, com ou sem ginásio, depende dos dias. Quando termino este treino, é que vou para as aulas e fico lá até às 20h”, descreve.
Também Pedro Casinha, de 19 anos, sente que é preciso “muita organização e controlo” para equilibrar a vida entre a canoagem e o mestrado integrado em Engenharia Biomédica na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa (FCT NOVA), curso a que acedeu também através do mesmo contingente. Sempre quis ser biomédico, mas apaixonou-se em criança pela canoagem. Desde então, tem quase uma vida dupla para tentar ser bem-sucedido nas duas realidades. O que, confessa, “é sempre difícil”.
“Conciliar o curso com a canoagem é um jogo de organização e de controlo sobre mim mesmo para poder conseguir fazer tudo ao mesmo tempo. Sinto também que isso está ligado à ajuda que os professores e a universidade disponibilizam aos atletas. Essas pequenas ajudas são bastante benéficas para os estudantes, porque permitem que consigamos fazer tudo sem nada sair prejudicado”, refere o campeão mundial de K1 200m do Campeonato Mundial Universitário de Canoagem.
Natural de Azeitão, Pedro é canoísta desde os 9 anos. Quando integrou a Selecção Nacional de Canoagem, percebeu que o seu futuro também passava por este desporto náutico, por isso a rotina que segue diariamente está desenhada para conseguir alcançar o seu maior sonho enquanto atleta – participar nos Jogos Olímpicos – e como estudante – ser biomédico. “Como estudante atleta, começo o dia a trabalhar muito cedo e termino o dia muito tarde. Tenho muito a ideia que o dia tem 25 horas e não 24 horas. Mas normalmente costumo levantar-me às 5h para treinar antes de ir para a faculdade. Depois de todas as aulas e do almoço, treino uma segunda vez e a partir daí tenho o resto do dia livre, é quando consigo estudar alguma coisa para os exames.”
E a saúde mental? “Uma questão complicada”
Seguir este caminho significa sacrificar muitas actividades de convívio com amigos ou família para estar presente nos treinos e nas competições. Para os três, essa gestão é a parte mais complicada de praticar um desporto de alta competição e ser estudante, em simultâneo — Camila, por exemplo, sonhava participar na vida académica aquando da entrada no ensino superior, mas nunca conseguiu ir à praxe, à latada ou a jantares de curso.
Para lidar com estas questões e com o stress de conciliar os estudos com os treinos e competições, os três atletas investem em estratégias para preservar a saúde mental. Telma conta a ajuda de uma profissional. “Por não conseguir gerir da melhor maneira o meu primeiro ano de faculdade com o karaté, comecei a ter acompanhamento psicológico para me ajudar a lidar com a ansiedade e com toda a confusão de estar a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, como testes, exames, treinos. Com tudo isso, andava sem tempo para mim e tive de procurar ajuda para conseguir arranjar forma de ter esse tempo para mim, que me estava a faltar”, refere.
No caso de Camila, a jovem procura seguir “à risca” a sua rotina para conseguir conciliar da melhor maneira as duas actividades, especialmente na altura de avaliações na faculdade. “A época de exames é sempre a altura mais stressante para mim, porque é nesse momento que tenho também competições e estágios. Torna-se um pouco complicado conciliar tudo, por isso tenho de ter tudo programado ao segundo para não falhar nada”, aponta a jovem de Coimbra.
Para Pedro, enquanto estudante atleta, a canoagem dá-lhe muitos momentos em que está muito feliz e motivado para continuar o percurso traçado, mas tem também muitos outros em que não se sente na melhor forma. “É uma questão complicada. Não tenho muitos momentos no intermédio, até porque às vezes basta um treino correr mal que fico desmotivado o resto da semana”, diz o jovem, que costuma ir ao psicólogo para “trabalhar” a forma com que lida com a frustração. E não só: “Também falo muito com os meus amigos e a minha família, no sentido de me ajudarem a libertar a cabeça desses pensamentos quando estou em momentos mais complicados.”
Texto editado por Amanda Ribeiro