“Mistura oca de alegados indícios.” Defesa de irmãos iraquianos acusados de crimes de guerra abre instrução
Os dois iraquianos, que estavam em Portugal desde Março de 2017, estão em prisão preventiva desde Setembro do ano passado, quando foram detidos pela Polícia Judiciária.
A defesa dos dois irmãos iraquianos acusados de crimes de guerra e adesão a organização terrorista arrasa a acusação do Ministério Público (MP) e defende que os arguidos não devem ser pronunciados para ir a julgamento.
De acordo com o requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado nesta terça-feira, e a que a Lusa teve acesso, o advogado Vítor Carreto sustenta que o despacho de acusação do MP a Ammar Ameen e Yasir Ameen está apoiado “em factos genéricos, abstractos, generalidades, juízos conclusivos sem explicitação em concreto de actos de terrorismo”, além de ser uma “mistura vaga, genérica e oca de alegados indícios” que travou o exercício do contraditório.
“Deve ser declarado que os alegados factos apontados aos arguidos não revestem contornos dos tipos legais do crime de organização terrorista e de guerra contra as pessoas ou de resistência e coacção sobre funcionário, pelo que deverão ser não pronunciados”, indica o documento, denunciando “uma versão romanceada” contada por algumas testemunhas.
Por entender a acusação como “nula”, à semelhança da prova recolhida, a defesa argumenta que os 225 artigos introdutórios deviam ser eliminados da acusação, por força dos “factos genéricos” aí descritos, sem deixar de lembrar a própria postura de Portugal e do Governo então liderado pelo primeiro-ministro Durão Barroso em relação à guerra no Iraque.
“Portugal é parte muito interessada na condenação dos arguidos”, lê-se no RAI submetido, que assinala que o Iraque “foi invadido com a conivência lusitana” e que essa guerra potenciou uma “inenarrável islamofobia” na maioria da população portuguesa. Acrescenta-se ainda que os dois irmãos “sempre negaram qualquer ligação” ao Estado Islâmico, ao reforçar que “inexistem indícios nos autos de que os arguidos tenham incorrido na prática destes crimes”.
Em termos formais, a defesa considera que deve “ser declarada incompetência dos tribunais portugueses para apreciar” este processo e que o mesmo deve ser remetido ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, entendendo que esta instância é que é competente para apreciar o caso. Por outro lado, é invocada a nulidade do inquérito por uma suposta ausência de acompanhamento do juiz de instrução criminal neste processo.
Questionando a existência de uma investigação das autoridades iraquianas, após citar um mandado de detenção de um juiz do Iraque, o advogado diz que “não pode haver jurisdições concorrentes”, pede um ofício junto das instâncias iraquianas para saber mais detalhes desse processo e critica o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) por querer uma justiça similar à da personagem Rainha da Copas, da obra Alice no País das Maravilhas, em que esta ameaçava cortar a cabeça dos súbditos.
O RAI vai ainda mais longe e aponta a falta de idoneidade dos intérpretes usados no processo, a existência de incongruências relativamente à fuga dos arguidos de Mossul, em Março de 2016, a não notificação dos arguidos de que foram alvo de escutas durante cerca de quatro anos e a ausência de perigo para a segurança nacional atestada na admissão do pedido de protecção internacional apresentado junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em 2017.
Sobre a conduta agressiva imputada pelo MP a Ammar Ameen junto do SEF, a defesa reconhece a frustração do arguido com o acolhimento em Portugal, mas nota que o iraquiano “nunca foi tratado aos problemas de saúde mental que evidenciava e constavam do respectivo processo”, assegurando que o mesmo “manifestou sempre repúdio pelo extremismo”.
Paralelamente a esta argumentação, a defesa dos dois irmãos suscita também um processo prejudicial junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), interpelando esta instância comunitária a pronunciar-se sobre a interpretação de disposições do direito da União à luz deste processo. E defende-se que, caso as questões levantadas tenham acolhimento do TJUE, “podem ferir de nulidade o processado por violação do devido processo legal penal”.
Um dos aspectos mais visados é a inexistência de limite temporal às escutas aos arguidos, que se prolongaram por cerca de quatro anos, com Vítor Carreto a observar que os próprios despachos judiciais que deram azo à prorrogação “são nulos”, por ausência de fundamentação, e que a lei portuguesa “não oferece garantias para evitar o abuso”. Nesse sentido, indica a violação dos princípios de privacidade e de proporcionalidade.
Segundo o DCIAP, no inquérito foi investigada a actividade dos arguidos enquanto membros do autoproclamado Estado Islâmico, nos departamentos Al Hisbah (Polícia Religiosa) e Al Amniyah (Serviços de Inteligência) durante a ocupação do Iraque por essa organização terrorista, designadamente entre 2014 e 2016.
Os dois iraquianos, que estavam em Portugal desde Março de 2017, estão em prisão preventiva desde Setembro do ano passado, quando foram detidos pela Polícia Judiciária.