Ricardo atravessou África e Europa numa bicicleta de bambu. Agora usa-a para promover a inclusão social
Depois das suas odisseias, o brasileiro Ricardo Martins co-fundou, no Brasil, uma ONG que promove a inclusão social através da bicicleta. Agora, quer trazer a ideia para Portugal.
O que é ser rápido? Poder conduzir muito depressa ou chegar mais cedo a casa porque um limite de velocidade maior provoca menos trânsito e acidentes? Andar num Ferrari veloz mas apenas em boas estradas ou conseguir alcançar qualquer lugar do mundo numa bicicleta? Talvez acelerar a economia global através de uma maior produção de energia não renovável e libertação de gases com efeito de estufa possa parecer rápido num horizonte curto, mas “lento se provas que [o planeta] colapsa em 20 ou 50 anos”.
Ricardo Martins, natural do Rio de Janeiro, Brasil, andava a reflectir sobre tudo isto enquanto atravessava o continente africano de Sul a Norte numa bicicleta de bambu e, de seguida, boa parte da Europa, sempre na irresistível e resistente Dulcineia. Depois de quatro anos na estrada, não existe peça que não se tenha partido. “Tudo, menos o bambu.” “Quando parei para pensar no princípio da bicicleta, houve uma conexão directa com o desenvolvimento sustentável porque estamos a tentar ir muito rápido em direcção ao colapso e estamos a descobrir que é preciso ir devagar”, contava à Fugas, pouco depois de dar uma palestra no Planetiers World Gathering, em Lisboa.
A velocidade “é relativa”, defende, e há que redefinir o conceito: pensar menos na velocidade média possível e mais no resultado final, esquecer a rapidez e focar-se no como, quando, para onde. 2018 foi um ano cheio: Ricardo andava a pedalar a Europa no seu projecto Roda Mundo quando foi convidado a apresentar o conceito na COP23 e numa TED Talk; regressou ao Rio de Janeiro para participar na Velo-City, o maior evento internacional dedicado à bicicleta enquanto meio de transporte, e, poucos meses depois, ajudava a fundar uma organização não-governamental que tenta aplicar o conceito através de “métodos de inclusão social de populações marginalizadas” em Queimados, cidade considerada a mais perigosa do Brasil naquele ano. Agora, quer trazer o conceito para Portugal e África.
“Não sou protagonista. Este projecto não é meu”, sublinha Ricardo, hoje com 37 anos, para se apresentar como uma ponte entre a organização - “o poder tinha de estar na comunidade” - e a rede de contactos que foi criando ao longo da viagem de bicicleta e por causa dela. “Conquistei uma voz com um poder muito grande, com mensagens grandes para partilhar e pessoas importantes ao meu redor. Tinha de usar isso para alguma coisa e decidi abrir espaço para uma comunidade que precisava.”
Na Pedala Queimados empregam quem não consegue integrar o mercado de trabalho e desenvolvem acções com as populações locais. “Não quero criar 100 empregos para quem já tem um emprego bom; quero criar dez ou 15 para quem estava numa velocidade zero.” Constroem bicicletas de bambu para vender “a um valor muito alto” e financiar a instituição e a criação de empregos, mas também consertam bicicletas doadas para oferecê-las na comunidade; criam oficinas “para formar mecânicos de bicicleta” para que possam encontrar aí uma fonte de rendimento; e organizam passeios de bicicleta para que descubram a própria cidade (“isso é acesso a território, muito importante para a auto-estima”); entre outros.
Pedalar o mundo numa bicicleta de bambu
Mas porquê bicicletas? Ricardo foi o primeiro da família a tirar um curso universitário. A escolha foi simples: “Marketing porque dá dinheiro.” Aos 22 anos, já tinha uma empresa e alcançado tudo o que define “uma pessoa bem-sucedida”, mas “não era feliz”, recorda. Entretanto, tinha comprado uma bicicleta e descoberto que “a deslocação entre um lugar e outro estava a ser mais prazeroso do que os lugares para onde ia”. Juntou uma coisa à outra. Largou tudo, pegou na bicicleta, meteu o equivalente a 100 euros na carteira e partiu numa viagem pela América do Sul. “Pedalar foi talvez a primeira decisão que tomei por mim mesmo e não por algum tipo de pressão social”, conta.
Estávamos em 2007 e o projecto Roda América foi a primeira grande viagem de Ricardo. Nunca tinha saído do Brasil. Partiu sem rumo, sem prazos. Quando o dinheiro acabasse, procurava emprego. Quando deixasse de querer estar na estrada, voltava a casa. Ao longo de quatro anos, pedalou cerca de 25 mil quilómetros entre Brasil, Bolívia, Peru, Chile, Argentina e, de novo, Brasil. Regressar à vida anterior foi um choque. “Voltas e as coisas são as mesmas, as pessoas falam dos mesmos problemas... Eu tinha mudado a minha vida completamente, tinha escrito um livro [sobre a viagem]”, recorda.
“A depressão pós-viagem é muito recorrente.” Ao contrário dos filmes, terminar “algo grandioso” é “um vazio gigante”. E agora? Ricardo demorou “quatro anos” a redescobrir quem era fora da estrada e, diz, só o conseguiu através da Sociologia, a “primeira carreira por amor”. Começou a trabalhar com cicloactivismo, com causas ambientais, fez voluntariado.
Em 2016, apesar de estar “muito feliz”, num trabalho que “amava” e “muito bem estabelecido” no sector, sentiu que a vida “podia ser mais”. Voltou a partir, desta vez “não por um buraco a ser suprido, mas por uma forma de ampliar o horizonte”, com um projecto ambicioso: o Roda Mundo, ou uma volta ao planeta numa bicicleta feita de bambu, com entrevistas pelo caminho com populações, organizações e entidades governativas sobre soluções de mobilidade, em parceria com a universidade onde tinha estudado e associações ligadas ao tema no Rio de Janeiro.
África “mudou a minha vida”
Ricardo não queria ser “um cara louco numa bicicleta”. Queria construir “um projecto de vida”. E porque não começar pelo continente mais desafiante? África foi a escolha óbvia e, afinal de contas, “menos difícil do que imaginava”, mas “uma porrada no peito, para o bem e para o mal”. Foi assaltado no primeiro dia de viagem, ainda na África do Sul. Atravessou três guerras civis e dois conflitos tribais, comeu ratos e areia, pedalou com -20ºC e +50ºC no deserto do Sara. A casa onde morava em Zanzibar ardeu por completo num incêndio.
O continente marcou-o tanto que o traz tatuado no braço. “A maneira de encarar a vida, de entender coisas básicas é completamente diferente.” África “tem muito a ensinar”, defende. A “força insubmissa”, a capacidade que têm “para qualquer coisa”, os sabores, os sorrisos, a capacidade de improvisação, a capacidade de união comunitária que é “impressionante”. Em Zanzibar, depois de perder tudo, nunca faltou comida nem bebida. “E não foi só porque queriam dar-me condições básicas de sobrevivência. Levavam-me para que me divertisse”, recorda.
Ao lado do perfil do continente, sobre um fundo de cores quentes, tem tatuado um baobá, “uma árvore imponente o suficiente para teres de parar o que estás a fazer e te emocionares a olhar uma árvore”. “Essa emoção extrema do desconhecido”, Ricardo não encontra na Europa, por onde continuou a viagem durante mais um ano e meio e onde mora actualmente. “Os melhores dias da minha vida foram vividos em África. Mudou a minha vida. Mas pagas um preço alto por isso. A vida é de extremos.”
Não é que a Europa não tenha uma História rica, uma grande diversidade cultural ou histórias e pessoas interessantes (“a cultura portuguesa é incrível, a comida, a melancolia é fascinante”), mas a vida ocidental “pasteuriza muito as coisas”. “Todo o mundo vê os mesmos programas de televisão, compra roupa e comida nos mesmos lugares, bebe as mesmas coisas, vai a lugares muito semelhantes.”
Barista em Dusseldof
Depois de quatro anos e dois continentes, decidiu pôr a volta ao mundo em pausa. “Quando todo o dia é novo, um dia novo deixa de ser novidade e ficas mais letárgico, mais dormente com coisas novas e perdes essa capacidade de esponja”, aponta. “Já estava a perder a minha curiosidade e paciência para conhecer os lugares, conversar com novas pessoas.” Queria parar de se despedir dos amigos e dizer simplesmente “até amanhã”. Queria ver filmes, ler, cozinhar, aprender coisas novas.
Ricardo vive, hoje, “um momento de transição”, em que é simplesmente “um barista em Dusseldorf”. “É como se estivesse a ter férias pagas”, diz. “A Alemanha paga muito bem e consigo usar esses recursos para as necessidades básicas da ONG, para projectos que considere interessantes, para visitar amigos e juntar dinheiro para quando quiser viajar de novo. É um momento de reorganizar força física, psicológica e financeira para construir coisa nova.”
Um dos objectivos para os próximos tempos passa por multiplicar o conceito da Pedala Queimados noutros países, sempre com o foco em populações marginalizadas, “em Portugal ou até de volta em lugares em África”, como Moçambique ou Quénia. “Estou a trabalhar para que aconteça no decorrer desse e do próximo ano. É um desafio gigante.” E a volta ao mundo? “Para mim, é um processo de vida. Pode ser que fique muito entediado daqui a pouco e vá viajar, pode ser que demore cinco ou dez anos. Tenho a vida inteira.”