A ilusão da redução da dívida pública

A atitude do Governo, de creditar a si próprio a evolução favorável da dívida esperada para o próximo ano, pode ser classificada como desonestidade e ilusionismo; e também como imprudência.

“O público susteve a respiração. O mágico, no seu impecável fato azul-escuro, um sorriso ‘tipo Monalisa’ na face, olhos postos na assistência, abre a caixa e saca, com gestos teatrais, uma redução da dívida pública. Um ‘uau’ de genuíno espanto encheu o espaço, os queixos caíram, as bocas ficaram por momentos abertas, a assistência levantou-se, as palmas jorraram em uníssono. Alguns, os mais desconfiados, julgaram ver na cara dele, por momentos, um sorriso trocista.”

A proposta de Orçamento Geral do Estado viu a luz do dia muito recentemente. A discussão do mesmo nos media deixou de basear-se num conjunto de suposições do tipo “disse que disse”, para passar a assentar nas pressuposições do Governo.

A partir de então, este, através dos seus membros, não se tem eximido a vender bem o documento e as benesses que ele trará para todos. Até as empresas, geralmente esquecidas nos apoios, são consideradas. Não se consegue deixar de pensar que se trata de ilusionismo e que, pelo menos alguns, sairão ludibriados.

Um dos aspetos mais propagandeados é o da redução da dívida pública, que a proposta refere ir evoluir de 115% em 2022 para cerca de 111% em 2023, valores em percentagem do PIB.

Sendo a dívida pública o maior dos constrangimentos à plena autonomia económica e financeira nacional, qualquer redução da mesma é de louvar e deixa esperança de que no futuro o país possa, finalmente, retomar as rédeas do seu destino coletivo.

Porém, este feito que o Governo credita a si mesmo não lhe é devido. Tal redução é um efeito ilusório que resulta do facto de utilizar percentagens para referir as variações do agregado macroeconómico dívida pública. Porque a expetativa é de que a dívida, em termos absolutos, aumente em 2023, tal como tem aumentado em todos os anos anteriores.

Tome-se o ano de 2022, que está a findar. As estimativas são de um valor da dívida pública de 252 mil milhões de euros, e do produto interno bruto (PIB) de cerca de 220 mil milhões. Dividindo o primeiro destes números pelo segundo tem-se a dita percentagem de 115. Considere-se agora que o PIB cresce 1,3% em 2023, como é previsto pelo Governo, e que o valor da dívida, por hipótese, se manteria inalterado em termos absolutos. Só por si, sem qualquer intervenção direta do Governo, a dívida diminuiria, em termos percentuais.

Veja-se um outro exemplo. Em 2020, a dívida em termos relativos atingiu 135%, quando em 2019 era de 117%. Ou seja, aumentou 18 pontos percentuais num ano. Assumiu o Governo a responsabilidade deste aumento? Foi culpa sua? Embora em termos de valor tenha havido um aumento da dívida de 9 mil milhões de euros, o grosso do aumento percentual deveu-se à redução verificada pelo PIB, na sequência da pandemia. De modo idêntico, em 2021 a dívida reduziu-se em 10 pontos percentuais, para 125%, apesar de em termos de valor ter crescido outros 9 mil milhões de euros. Também neste caso, por efeito da variação do PIB.

Portanto, a atitude do Governo, quando atribui a si próprio os créditos pela evolução favorável da dívida esperada para o próximo ano, pode ser classificada sob dois prismas: como desonestidade e ilusionismo, pois tal efeito se deve à evolução esperada do PIB; como imprudência, pois transmite para os cidadãos a ideia, errada, de que, efetivamente, a dívida está a diminuir, quando continua a aumentar.

A consideração da dívida em percentagem do PIB pode ser importante para efeitos de comparações internacionais, ou para os credores do país poderem aferir da capacidade deste para lhes pagar o que se preparam para emprestar. Porém, enquanto aquela não se reduzir em valor, os encargos financeiros com a mesma continuarão a aumentar.

Volte-se aos números referidos. Entre 2019 e 2020 a dívida cresceu 18 mil milhões de euros (1800 euros por cidadão, supondo uma população de 10 milhões de habitantes). Para uma taxa de juro média de 3%, tal aumento implica um crescimento anual dos juros pagos de 540 milhões de euros. Não, não é lapso. É esforço anual, 540 milhões em cada um! Significa que se se demorar 20 anos a reembolsar esse acréscimo de dívida e a taxa de juro se mantiver inalterada, em contas muito singelas, o custo em juros será de 10,8 mil milhões de euros (a previsão do custo da linha de alta velocidade entre Porto e Lisboa é de 4,9 mil milhões de euros)!

Em tal contexto é incompreensível que os partidos da oposição não estejam minimamente sensibilizados para o problema do valor da dívida e o que significam as medidas de acréscimo da despesa orçamentada que, com à vontade, propõem. Mais incompreensível ainda, que o partido do Governo use de ilusionismo para retirar dividendos políticos à custa da dissimulação da gravidade do problema.

Será compreensível, obviamente, se uns e outros partirem do princípio de que a dívida pública não é para pagar.

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