Sem reconhecer derrota, Bolsonaro dá aval à normalização política
Presidente brasileiro não pôs em causa os resultados, mas considerou “injusto” o processo eleitoral. Não pediu o fim dos protestos, mas condenou bloqueios. É pouco, mas suficiente para uma transição.
Ao fim de quase 48 horas, o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, quebrou finalmente o silêncio e comprometeu-se a respeitar a Constituição, embora reforçando as críticas ao processo eleitoral. Numa declaração muito curta no Palácio da Alvorada, em Brasília, o chefe de Estado não reconheceu abertamente a derrota nem saudou o seu adversário, Lula da Silva.
Já se sabia que Bolsonaro não iria contestar abertamente o resultado das eleições de domingo, mas os moldes em que o faria eram desconhecidos até ao momento em que falou. Pressionado pelas principais instituições democráticas, tribunais, partidos e até alguns aliados a fazer uma declaração que apaziguasse os ânimos dos seus seguidores, Bolsonaro não desejava desmotivar por completo os seus apoiantes.
Fê-la dando a garantia de que vai cumprir a Constituição ao longo do período de transição, mas não deixou de reconhecer e simpatizar com o “sentimento de injustiça” que os seus apoiantes dizem sentir em relação à forma como decorreram as eleições.
A mão de Bolsonaro foi forçada depois de, logo após a proclamação da vitória de Lula, vários actores políticos relevantes, incluindo alguns dos mais próximos do ainda Presidente, terem reconhecido o resultado e mostrado a intenção de prosseguir a vida política. Isolado, restava a Bolsonaro confiar num levante popular que, de acordo com a imprensa brasileira, pouco teve de espontâneo, para causar um nível de instabilidade que abrisse margem para algum tipo de estado de excepção.
“Enquanto Presidente da República e cidadão, continuarei cumprindo os mandamentos da nossa Constituição”, declarou Bolsonaro, naquela que é a frase crucial de uma declaração de cerca de dois minutos e sem direito a perguntas dos jornalistas. Assim que terminou de falar, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, declarou que será dado início ao processo de transição entre o governo cessante e o sucessor, que toma posse a 1 de Janeiro de 2023. Há normalidade democrática no horizonte do Brasil.
Entre a confirmação da sua derrota e a declaração desta terça-feira, o Brasil assistiu a cenas caóticas, depois de centenas de estradas terem sido ocupadas por apoiantes de Bolsonaro que se recusam a reconhecer os resultados eleitorais. Bolsonaro definiu os protestos como “movimentos populares” que são “fruto da indignação e sentimento de injustiça” com o processo eleitoral.
Apesar de indicar algum apoio às “manifestações pacíficas”, o Presidente brasileiro condenou certos métodos utilizados, incluindo a ocupação de estradas.
Durante o dia, Bolsonaro terá pedido aos juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) uma reunião, de acordo com a imprensa brasileira, mas o convite foi recusado. Antes, o chefe de Estado deveria pronunciar-se publicamente sobre o resultado das eleições, responderam os juízes.
Estradas paralisadas
Durante meses, Bolsonaro alimentou a dúvida quanto à possibilidade de vir a rejeitar uma eventual derrota contra Lula da Silva. O Presidente vinha a veicular teorias sem qualquer confirmação sobre a vulnerabilidade do sistema de voto electrónico a fraudes. A poucos dias das eleições, a campanha do Presidente apresentou uma queixa de que a sua propaganda eleitoral não estaria a ter o mesmo espaço que a do seu adversário em rádios no Nordeste. As autoridades eleitorais não deram razão às alegações de Bolsonaro.
O prolongamento inédito da ausência de uma reacção pública do candidato derrotado às eleições presidenciais cimentou a ideia de que poderia haver uma rejeição dos resultados. Movidos por essa percepção, milhares de camionistas apoiantes de Bolsonaro começaram a bloquear auto-estradas em vários pontos do país logo no domingo à noite. Ao início desta terça-feira, registavam-se centenas de bloqueios em 23 estados e no Distrito Federal, com especial incidência nas regiões do Sul e do Centro-Oeste, onde o bolsonarismo é mais forte.
Os bloqueios rodoviários tiveram impacto no transporte de vários bens de primeira necessidade, afectando a distribuição de combustível e o fornecimento de supermercados e farmácias. No Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, foram cancelados pelo menos 25 voos depois de algumas das vias que ligam a cidade ao aeroporto terem ficado várias horas bloqueadas.
O recrudescimento da situação levou o Supremo Tribunal Federal a dar ordens à Polícia Rodoviária Federal (PRF) para que avançasse para a desobstrução de todas as estradas ocupadas. Vários estados recorreram à Polícia Militar para repor o tráfego regular e em São Paulo foi mobilizada a polícia de choque. Ao longo do dia, as autoridades policiais conseguiram desmantelar centenas de bloqueios, mas muitos ainda permaneciam ao início da noite.
Segundo a imprensa brasileira, a paralisação rodoviária terá sido organizada através de grupos de Whatsapp pró-Bolsonaro ao longo das últimas semanas como forma de pressão sobre as instituições democráticas em caso de uma derrota do actual Presidente.