Lee McIntyre: “Aquilo que os negacionistas realmente procuram é alguém que os ouça”

Recusar a realidade é um perigo, aponta o filósofo Lee McIntyre. E não responder a um negacionista é deixar a mentira viver: o diálogo é possível, mas requer tempo.

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Protesto de negacionistas anti-vacinas da covid-19 em Lisboa, Agosto de 2021 Nuno Ferreira Santos

A Terra é redonda, a covid-19 existe, as vacinas são eficazes, as alterações climáticas são reais. Se concorda com a frase anterior, provavelmente não é negacionista. Mas há quem se recuse a aceitar a verdade – e assim “estão a contribuir para uma cultura de negação”, diz-nos o filósofo Lee McIntyre, em entrevista com o PÚBLICO.

“O maior perigo é que o negacionismo se tornou tão eficaz que leva os políticos a acreditarem que podem negar os factos que quiserem”, acautela ainda o investigador da Universidade de Boston, que escreveu o livro Como Falar com um Negacionista (editora Desassossego), lançado em Outubro.

Os negacionistas tendem a acreditar em teorias da conspiração, a escolher a informação a dedo e a serem selectivos naquilo em que acreditam. Não é só uma questão de factos: “Se o negacionismo fosse só ignorância, seria fácil de resolver”, comenta o autor.

É uma questão de identidade, de ideologia, e “há quem crie desinformação e lucre com isso”. Vale sempre a pena responder a alguém que difunda estas mentiras, por muito frustrante que possa ser. Não há como fugir: “Todos os aliados da ciência têm de começar a lidar com negacionistas”. Ser agressivo e ridicularizar não resolve o problema e pode mesmo ter o efeito contrário. Além disso, “uma mentira tem uma audiência”, diz Lee McIntyre – se ninguém a esclarecer, pode haver quem deixe germinar as suas ideias negacionistas.

Depois de ler o livro fiquei com a sensação de que até tem uma visão optimista dos negacionistas: acredita que é possível dialogar e até “convertê-los”, com tempo, dedicação e empatia. Concorda com esta visão?
Diria que sou optimista em relação ao facto de se poder falar com alguns deles e convertê-los. E o problema é que nem sempre se consegue perceber quem é quem. O negacionismo da ciência existe num espectro: há um mais hardcore do que outros. Mas li casos de alguns negacionistas que desistiram dessas suas crenças, portanto não quero mesmo desistir de ninguém.

E qual é a melhor forma de lidar com um negacionista?
A primeira coisa a fazer é não os chamar negacionistas porque se sentem insultados com isso. Penso que aquilo que os negacionistas realmente procuram é alguém que os ouça. Não estão só mal informados, estão desconfiados. Há sempre algum medo por trás disso. Há alguma emoção: talvez não estejam habituados a que os ouçam, ou que as pessoas os levem a sério.

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O filósofo norte-americano Lee McIntyre DR

Os relatos anedóticos de pessoas que mudaram de opinião aconteceram todos da mesma forma: quando alguém teve tempo para os ouvir. E quando alguém foi paciente e os tratou com respeito. Aí sentem-se ouvidos e começam a confiar na pessoa, torna-se um diálogo. Quando confiam na pessoa – que é algo difícil de conseguir – a conversão é possível.

E foi o que tentou fazer quando foi em 2018 à convenção das pessoas que acreditam que a Terra é plana?
Sim. É particularmente difícil com aquele grupo: apesar de todos os negacionistas serem iguais na sua estratégia argumentativa, os terraplanistas são muito hardcore. E têm de ser: se for um negacionista das alterações climáticas ou das vacinas, existem milhões de pessoas com a mesma visão que se pode encontrar em público. O movimento da Terra Plana é maior do que se pensa, há muita gente que acredita nisso, mas tendem a escondê-lo. Mas podemos estar a trabalhar com alguém que é terraplanista e não saber.

No Brasil, por exemplo, cerca de 11 milhões de pessoas acreditam que a Terra é plana.
Sim, 7% da população. É muita gente.

Aqui em Portugal não parece ter grande expressão.
Há um aspecto curioso em relação a Portugal: Portugal tem uma das taxas mais baixas de negacionistas na Europa. Lembro-me de falar com algumas pessoas e pergunto-me se poderá estar relacionado com a estabilidade política. Não o estudei, não sei. Mas é algo de que os portugueses deveriam estar orgulhosos. Não há muitas pessoas anti-vacinas. Não tiveram a melhor taxa de vacinação aí?

Tivemos, sim, com a covid-19. E pode não ser expressivo, mas houve pessoas que se recusaram a levar a vacina.
Bem, só “algumas” pessoas em relação aos Estados Unidos em que andavam à pancada por causa disso...

Acredita que o negacionismo não deve ser reduzido a uma questão de ignorância?
Por vezes, os negacionistas têm até elevados níveis de educação e sabem como defender-se. Leram estudos. Sabem qual o consenso. Um aspecto do negacionismo é que escolhem as informações a dedo. E as pessoas inteligentes são muito boas a escolherem as informações a dedo.

Em alguns casos é ignorância. O problema é que, se fosse só ignorância, seria fácil de resolver. Mostrávamos os factos e eles convertiam-se. Então há algo mais: penso que é a desconfiança. Uma das coisas mais importantes que temos de saber sobre o negacionismo é que não surge do nada. É intencional. Há pessoas que criam mentiras sobre as alterações climáticas, sobre as vacinas, de propósito, pelos seus próprios motivos egoístas. E atiram isso para a Internet, amplificam a mensagem. As pessoas que acreditam naquilo acabam por ser vítimas.

A dificuldade é que, quando alguém é enganado, é muito difícil de os fazer ver isso. Porque aí a identidade deles fica em jogo, o seu ego fica em jogo. Não só confiam na pessoa que lhes mente, mas parte da desinformação fá-los desconfiar das pessoas que estão a dizer a verdade. Porque eles estão na outra equipa, são os inimigos, são os mentirosos. Quem acreditar em teorias da conspiração – e praticamente todos os negacionistas acreditam –, facilmente acredita nisso.

Quando fui à Convenção da Terra Plana, eles não iam acreditar numa palavra que eu dissesse porque não confiavam em mim. Tinha de tentar conquistá-los ao ganhar confiança. E não os converti, mas fiz com que me ouvissem. E o título do meu livro é Como Falar com um Negacionista, não Como Convencer um Negacionista. (risos) Falar é o primeiro passo. Fazer com que as pessoas ouçam é muito importante.

Portanto não é só uma questão de factos, é uma questão de identidade. Mas não é mais difícil assim sendo?
Sim. Os negacionistas não têm um défice de factos, têm um défice de confiança. Imagine que tentava convencer alguém a abandonar as suas crenças religiosas, ou as suas crenças políticas – seria muito difícil. Não é só aquilo em que acreditam, é aquilo que são. E os negacionistas são assim.

Já pensei que uma forma seria mostrar-lhes como é que a ciência funciona. Os cientistas não são assim: um cientista está disposto a mudar de ideias face a novas provas. É isso que significa ser cientista: estar disposto a dizer que estava errado com base no que mostram as evidências. É uma lição muito importante. Quando falo com negacionistas, pergunto se se consideram cientistas, se são cépticos, se baseiam as suas crenças nas provas e não na fé, eles dizem que sim. E depois pergunto: “Qual é a prova que o convenceria de que está errado?” e não me conseguem responder a isso. E fico em silêncio para os deixar nesse desconforto, porque um cientista seria capaz de responder a essa questão. E aí ficam a pensar: será que as suas crenças são apenas identitárias? São baseadas em suspeitas?

E não é preciso serem apenas cientistas a dialogarem com negacionistas, certo? Qualquer pessoa o pode fazer?
Os negacionistas escolhem a informação a dedo e acreditam em teorias da conspiração e acreditam em especialistas falsos e acham que a ciência tem de ser perfeita, têm todos estes erros que fazem na sua argumentação... Não é preciso ser cientista para entender isso. Todos os aliados da ciência têm de começar a lidar com negacionistas. E não descartá-los como pessoas com quem não vale a pena falar. Pode ser frustrante, bem sei por experiência própria, mas quando se consegue romper e ter uma conversa pode ser envolvente.

Não responder é a pior coisa que podemos fazer?
Isso mesmo.

Mas não basta fazer uma vez. É preciso tempo?
Sim. Falar cara-a-cara é o melhor. Falar é melhor do que ficar em silêncio. Mas tentar convencer alguém na página de comentários de um jornal possivelmente não vai funcionar. Não é o melhor uso do nosso tempo. E algumas dessas pessoas são trolls, sabem que aquilo que estão a dizer está errado e estão só a divertir-se ou a fazer aquilo por motivos políticos.

Ou são pagos para fazerem aquilo, porque há quem crie desinformação e lucre com isso. Basta pensar nas empresas petrolíferas, na indústria do tabaco. Mas acredito que é preciso responder a um mentiroso, mesmo que seja um troll. Pessoalmente, não deixo passar. Porque uma mentira tem uma audiência. Podemos não convencer a pessoa que está a falar, mas há uma audiência que os está a ouvir. E se nunca ouvirem o outro lado, ficam a pensar “porque é que haveria de os ouvir?”.

E na Internet pode ser ainda mais complicado. Muitas acabam por ridicularizar as pessoas e dão respostas muito agressivas. Pode ter o efeito contrário?
Sim, é preciso manter a calma. A Internet é o pior sítio para o fazer e penso que é também uma das principais responsáveis na amplificação da desinformação. Não são precisas muitas pessoas para amplificar uma mentira. E ter estas discussões na Internet pode, por vezes, amplificar a mentira.

Na Internet ou nas redes sociais em específico?
Diria que o Facebook e o Twitter são os principais culpados. Não porque estejam a partilhar desinformação de forma propositada.

Por não a combaterem?
Sim. E poderiam fazê-lo. Fazem-no, mas não tendo em conta a proporção do problema. Quase toda a gente que conheci na Convenção da Terra Plana eram adultos, que acreditavam que a Terra era redonda e que mudaram de ideias depois de verem vídeos do YouTube. Uau. A Internet como um todo é o melhor mecanismo para encontrarmos a verdade, desde que seja usada da forma certa.

Quais são os maiores perigos do negacionismo?
O negacionismo acontece por um motivo e, historicamente, essa razão é o dinheiro. Ou ideologia. O maior perigo é que o negacionismo se tornou tão eficaz que leva os políticos a acreditarem que podem negar os factos que quiserem. Transformou-se em negacionismo da realidade. Factos sobre crime, sobre votação, sobre qualquer coisa.

O que aconteceu é que a fórmula que os negacionistas usam está a ser usada por políticos de extrema-direita nos Estados Unidos e por todo o mundo para permitir o autoritarismo. Quando se mente à população dá para a controlar, faz com que desconfiem de quem diz a verdade. Foi o que Donald Trump fez nos Estados Unidos.

Não é difícil de ver: era um narcisista que não quis admitir que perdeu as eleições. O negacionismo é o ponto de partida para o fascismo. O negacionismo leva à negação da realidade e a negação da realidade leva à autocracia, o que é assustador. Podemos pensar que não estão a fazer mal a ninguém, mas estão. Porque estão a contribuir para uma cultura de negação.

Olhando para trás: mais de dois anos depois, o que é que aprendemos com a pandemia da covid-19 e os negacionistas?
Quase nada. É triste. Não acredito que, se tivéssemos outra pandemia amanhã, seria melhor. Os especialistas em vacinas não são especialistas em lutar contra a desinformação.

Os médicos e profissionais de saúde estavam a lidar não só com uma pandemia, mas com uma infodemia. Não sabiam o que fazer. Não tinham tempo. Estavam a tentar salvar vidas e recebiam ameaças de morte. Estavam a tentar lutar contra informações falsas. No meu próximo livro falo de como lutar contra a desinformação. É o verdadeiro inimigo.

A boa comunicação é chave?
Sim. E não se pode esperar que as pessoas sejam negacionistas para fazer essa comunicação. Há que comunicar atempadamente.

Ainda em relação à covid-19: o facto de a pandemia ter ficado mais calma, por assim dizer, pode ter levado algumas pessoas a acreditar que afinal tinham razão, que isto não era grave. Como é que se responde a isso?
(pausa) Essa pergunta deprime-me. Milhões e milhões de pessoas morreram, não sei o que mais é preciso para convencer alguém de que isto tem de ser levado a sério. Há gráficos que mostram que os países com maiores taxas de vacinação são aqueles com menos mortes por covid. Do que mais precisam? As vacinas funcionam. Há quem diga que levou a vacina e teve covid à mesma, mas ninguém mentiu nisso. O objectivo da vacina era que, mesmo que se apanhasse covid, seria menos grave. Não viram o futuro alternativo que teria acontecido sem vacinas e acham que alguém lhes mentiu. Há estudos epidemiológicos que o mostram. É o básico das estatísticas.

Qual é o perfil de um negacionista?
Quem me dera saber. Pode ser qualquer pessoa. Todos conhecemos um negacionista, essa é a verdade. E é a pessoa com quem não queremos falar. Há um jantar de família e não puxamos pelo assunto, mas é importante fazê-lo. Porque se for um membro da família ou um amigo, essa pessoa já confia em nós. E quem muda de ideias é quem confia. Se um membro da família confia, temos mais hipóteses do que se for um estranho.

E tendem a ser pessoas que acreditam em teorias da conspiração?
Sim.

Por vezes, todos nós podemos incorrer nos mesmos erros: podemos não acreditar tão rapidamente em algo porque vai contra aquilo em que acreditamos.
Até eu. É verdade. Mesmo alguém que estuda negacionismo pode cair neste erro. A fuga para isso é abraçar a ideia de “Que prova me faria perceber que estou errado?” e procurá-la.

Além da Terra plana, das vacinas, do clima e da evolução, há outros tipos de negacionismo? Algum que esteja em ascensão?
Esses são os grandes grupos. O que é curioso é que quase ninguém é contra a ciência, não há quase ninguém que não acredite realmente em nenhuma ciência. O negacionismo é direccionado para determinados tópicos. E há bizarrias: há terraplanistas que não confiam nos pilotos dos aviões porque acham que fazem parte da conspiração, mas confiam neles o suficiente para voar nos aviões por eles pilotados. Confiam neles para fazer voar o avião, mas não confiam neles quanto à forma da Terra. São selectivos.

Não vou descansar enquanto não encontrar uma forma melhor de lutar contra isto. Falar com as pessoas quando já foram “infectadas” não vai resolver o problema, ainda que seja parte da solução. O que vai resolver o problema é percebermos que foi através da desinformação que ficaram “infectados”. Agora estou a focar toda a minha atenção nos amplificadores. As pessoas que sabem o que fazer estão no Exército, nos serviços secretos, mas precisamos disso de forma pública. Não é só contra outro país, é contra fontes internas de desinformação.

Combater o negacionismo ligado às alterações climáticas é algo urgente? Porque a acção é necessária e ainda há quem não acredite.
É verdade. O negacionismo do clima é mais perigoso do que os terraplanistas. O do clima é o que me preocupa mais. A parte triste é que eu costumava acreditar que, se convencêssemos todos os negacionistas climáticos, poderíamos resolver o problema climático. Já não acredito nisso. É que também os teríamos de fazer preocuparem-se com isso. As pessoas pensam que já vão estar mortas quando as afectar, ou que vão fazer muito dinheiro enquanto der. O que se faz? Como é que se convence alguém não só a mudar as suas crenças mas os seus valores? É um problema muito maior. Isto virá atrás de todos nós.

A ciência está a viver uma crise de legitimidade? Porquê?
Penso que os cientistas têm de encontrar mais a sua própria voz para serem ouvidos. Para que não só defendam factos científicos, mas para defender o processo através do qual chegam a esses factos. Penso que a maior parte dos negacionistas não conhece cientistas. Os cientistas são curiosos, afáveis, pessoas amáveis. São tão cautelosos. O que até pode fazer com que não pareçam de fiar quando dizem que não sabem algo. Mas não: é porque estão a ser tão cuidadosos no que estão a dizer, o que é uma virtude. Precisamos de mais educação pública nas virtudes da incerteza, da humildade, do falhanço, da ignorância. Todas estas coisas das quais a ciência aprende. Se acham que a ciência tem a certeza de tudo é porque não entendem a ciência.