Aprender a viver com o que temos
Tudo o que usamos, se não tiver uma origem orgânica, é feito a partir de matérias-primas minerais. Para fabricar um telemóvel, por exemplo, são usados mais de 60 elementos químicos, todos concentrados a partir de minerais explorados em vários países. Este é o segundo texto, de cinco, dedicado à importância da geodiversidade.
Sejamos claros: os seres humanos são completamente dependentes deste planeta e não é previsível que, nas décadas mais próximas, seja possível explorar recursos minerais em outros corpos do sistema solar. Tudo o que usamos, se não tiver uma origem orgânica, é feito a partir de matérias-primas minerais. Isto significa que teremos de gerir com sabedoria, responsabilidade e respeitando os limites naturais, os recursos geológicos existentes, desde os mais escassos e não renováveis, até aos mais abundantes.
A humanidade encontra-se perante um problema complexo para o qual será necessário contar com o conhecimento científico produzido pelos geocientistas. Estamos no único corpo do sistema solar que, até à data, demonstrou ter capacidade para albergar seres humanos e que nos disponibiliza um conjunto finito de recursos que têm de servir uma população crescente.
As Nações Unidas prevêem que seremos 8000 milhões a 15 de Novembro de 2022 e estimam que este número continuará a crescer até cerca de 11.000 milhões, no final deste século, quando este crescimento, previsivelmente, estabilizará. Na realidade, a taxa anual de crescimento da população está já a decrescer, tendo atingido o seu máximo em 1968 (2,1%) e prevendo-se que seja de 0,1% em 2100.
O aumento da população humana confronta-nos com o consumo crescente de recursos, não só porque há mais seres humanos no planeta, mas porque muitos deles têm vindo, felizmente, a desfrutar de padrões de bem-estar económico e social necessários a uma vida confortável e simultaneamente mais longa.
Actualmente, 54% da população mundial tem saneamento básico e tratamento de efluentes (era apenas 28% em 2000) e 74% tem acesso a água de qualidade (62% também em 2000); o número de pessoas sem acesso a electricidade reduziu-se em 59% nos últimos 20 anos e, em 200 anos, a taxa de população alfabetizada passou de 12% para 85%.
Esta evolução não é independente do facto de 85% da população mundial viver em zonas urbanas (dados de 2015 da Comissão Europeia), tendência que se vai acentuar. Todavia, é preciso não esquecer que há ainda um longo caminho a percorrer até que todos os seres humanos vejam satisfeitos o direito de ter uma vida digna.
Sabia que...
... a construção de painéis fotovoltaicos para um parque solar com uma área de um quilómetro quadrado necessita de 11 toneladas de prata.
Actualmente, em cada ano, um cidadão europeu consome cerca de 14 toneladas de matérias-primas e produz cinco toneladas de resíduos. Vejamos alguns exemplos:
- Para fabricar uma bateria de 100 kWh para um automóvel eléctrico são necessários dez quilos de lítio, processado a partir de minerais (espodumena, ambligonite, lepidolite e petalite) ou de soluções salinas. A mesma quantidade que é necessária para produzir as baterias de dez mil telemóveis;
- A construção de painéis fotovoltaicos para um parque solar com uma área de um quilómetro quadrado necessita de 11 toneladas de prata. Estima-se que, até 2050, a mineração tenha de aumentar 500% de modo a satisfazer a procura exponencial por tecnologias descarbonizadas;
- São necessárias 67 toneladas de cobre para um único aerogerador instalado ao largo da costa (off-shore), para as quais foi necessário remover 50 mil toneladas de rocha e solo (cerca de cinco vezes o peso da Torre Eiffel). Actualmente, existem cerca de 150 milhões de toneladas de cobre nas redes eléctricas de todo o mundo;
- Para produzir um telemóvel são utilizados mais de 60 elementos químicos diferentes (arsénio, cobre, gálio, ouro, paládio, platina, prata, tungsténio, lítio, cobalto, etc.), todos eles concentrados a partir de minerais explorados em vários países do mundo;
- O nylon e o poliéster usados na indústria têxtil, assim como as diversas variedades de plástico usadas em inúmeros produtos, são derivados do petróleo, um recurso geológico que tem muito mais aplicações para além da produção de combustíveis;
- Na produção do papel são usados diversos minerais como o talco, a caulinite, a barite e o feldspato;
- Alguns medicamentos e terapias médicas recorrem a elementos químicos (antimónio, ferro, lítio, zinco, urânio, entre muitos outros) extraídos de minerais;
- A construção de infra-estruturas como casas, hospitais, escolas, barragens, pontes, túneis e estradas necessita de milhões de toneladas de rochas e minerais.
Este breve apanhado de exemplos é bem ilustrativo do desafio que temos pela frente. Como a quantidade de recursos geológicos não aumenta e sua demanda vai crescer nas próximas décadas, inclusive alguns até recentemente nunca utilizados, temos a humanidade perante um problema de difícil, mas urgente solução. E é óbvio que essa solução não pode passar pelo aumento desenfreado da exploração de recursos geológicos, até porque alguns destes recursos são raros, obrigando ao seu transporte por milhares de quilómetros, à custa do consumo de grandes quantidades de combustíveis fósseis.
A solução tem de passar por uma estratégia definida e posta em prática a diversos níveis, que não comprometa o bem-estar da humanidade e seja ambientalmente responsável, de acordo com o estipulado pelos objectivos do desenvolvimento sustentável definidos pelas Nações Unidas:
- Mudar o actual modelo de produção e consumo para um outro designado por “economia circular”. Os produtos devem ser usados ao máximo até esgotar o seu ciclo de vida, fazendo com que seja necessário produzir menos e originar menor quantidade de resíduos;
- Implementar de forma efectiva a reciclagem, reutilização e redução, contribuindo, assim, para o decréscimo da exploração de recursos geológicos e diminuindo, simultaneamente, o consumo de energia;
- Incentivar a investigação em geociências de modo a descobrirmos novas jazidas minerais e melhorar os métodos para a sua exploração, reduzindo ao máximo os impactos ambientais negativos associados a esta actividade;
- É, aliás, importante continuar a investigação científica e tecnológica de modo a permitir encontrar soluções que sejam menos exigentes do ponto de vista da necessidade de utilização de recursos minerais e energéticos.
Uma parte desta estratégia vai para além da definição de políticas e legislação, devendo integrar uma componente de educação ambiental que contribua para que cada cidadão esteja ciente da dependência que temos da geodiversidade e, deste modo, contribuirmos também individualmente para uma melhor gestão dos recursos naturais.
Durante o primeiro semestre de 2021, foram registados 5,4 milhões de carros novos na União Europeia, para os quais terão sido necessários muitos milhões de toneladas de matérias-primas minerais. Será que todos estes novos veículos são mesmo imprescindíveis para assegurar as necessidades de transporte dos seus proprietários?
E, nos últimos dez anos, triplicou em todo o mundo o número de novos telemóveis vendidos: hoje, são cerca de 1500 milhões todos os anos. Acresce o facto de que, quanto maior for o desenvolvimento tecnológico de um produto ou serviço, maior é a diversidade de minerais necessários para a sua produção. Pensemos nos actuais 5G e na Internet das Coisas e constatamos que a apregoada desmaterialização está assente numa intensa utilização de matérias-primas minerais.
A poupança, reciclagem e reutilização de todo o tipo de produtos são não só necessárias para diminuir a necessidade de exploração de recursos minerais, como encontra justificações de natureza política, ética e social. A recente ocupação da Ucrânia pela Rússia, que levou à imposição de sanções económicas por parte da comunidade internacional, alertou o público em geral e os responsáveis políticos para um aspecto que os geólogos há muito conhecem. Os recursos geológicos estão distribuídos no planeta em resultado de processos ocorridos desde há muitos milhões de anos e a sua localização não obedece a tratados políticos ou questões administrativas.
Desde logo se tomou consciência de que a União Europeia está dependente do gás natural da Rússia, mas ainda pouco se fez notar que a Rússia é um país exportador de muitos outros recursos minerais necessários ao resto do mundo e que, a qualquer momento, pode ser interrompido o seu fornecimento aos mercados internacionais. A Rússia está no top 3 dos principais países produtores de recursos como níquel, tungsténio, alumínio, antimónio, arsénio, gálio, germânio, terras-raras, telúrio, ouro, paládio, platina, ródio, asbestos, diamante, potássio, enxofre, carvão, gás natural e petróleo.
Podem ser dados outros exemplos de recursos minerais que se encontram, quase exclusivamente, “nas mãos” de um único país, deixando o mercado internacional na sua dependência, como é o caso da China, que detém cerca de 80% da exploração de terras-raras, essenciais para a indústria electrónica, ou da República Democrática do Congo, com 60% da extracção de cobalto, imprescindível para as actuais baterias de veículos eléctricos, computadores portáteis e telemóveis.
Um outro aspecto que devemos considerar no que toca à proveniência de alguns dos minerais necessários para fabricar bens muitas vezes acessíveis apenas aos países mais ricos, tem a ver com aspectos sociais e ambientais. Alguns destes recursos são explorados em países onde não existe regulamentação ambiental ou laboral, onde são praticados baixos salários e onde existem péssimas condições de trabalho e de segurança, ocorrendo muitas vezes exploração de trabalho infantil e condições objectivas de moderna escravatura. Os recursos minerais extraídos nestas condições, mais baratos de acordo com a actual lógica de mercado, são depois transportados para outros países onde são incorporados em todo o tipo de produtos que nos são apresentados de forma reluzente nas prateleiras das lojas e em atractivas campanhas publicitárias, estimulando uma sociedade de consumo desnecessária, ambiental e socialmente danosa e injusta.
É, pois, crucial que todos, decisores políticos e cidadãos, colectiva e individualmente, estejamos conscientes das problemáticas ligadas à geodiversidade e à utilização de recursos geológicos, de modo a que possamos tomar decisões justas suportadas no conhecimento existente.
Agradecimentos a Luís Lopes e Teresa Salomé Mota pela leitura e revisão crítica do texto
Geólogo da Universidade do Minho e membro da Associação Portuguesa de Geólogos