Activistas detidos: “A única coisa que está a ficar mais agressiva é a crise climática”
Protestos de desobediência civil pelo clima têm-se sucedido com regularidade e já resultaram em múltiplas detenções. Manifestantes dizem evitar a violência com acções de “disrupção pacífica”.
Na semana passada, num museu londrino, duas activistas atiraram sopa a um quadro de Van Gogh num protesto contra o petróleo (as jovens acham que protegemos mais as obras de arte do que o planeta). Elas estão ligadas ao movimento Just Stop Oil, que tem passado os últimos dias a cortar o trânsito em Inglaterra. Na Alemanha, quem está a bloquear as ruas são os próprios cientistas. Por cá, a polícia deteve, esta segunda-feira, três activistas do grupo Climáximo que protestaram junto à sede da Galp, em Lisboa.
As acções de desobediência civil pelo clima não são de hoje, mas têm acontecido regularmente nos últimos dias. E os vários grupos de activistas prometem ainda mais protestos para as próximas semanas.
Os envolvidos nestas manifestações dizem procurar evitar a violência. “São acções de disrupção pacífica. A única violência que existe será a perturbação do quotidiano das pessoas”, diz João Carvalho, do grupo Scientist Rebellion, o tal que nos últimos dias tem estado activo na Alemanha, protestando, por exemplo, à porta do Ministério dos Transportes (aconteceu no último domingo) e dentro de um pavilhão onde estão em exibição permanente diferentes automóveis do Grupo Volkswagen (foi esta quarta).
O Scientist Rebellion, que deriva do mais conhecido movimento Extinction Rebellion, é composto por cientistas que sentiam que o trabalho que estavam a fazer para estudar as alterações climáticas e alertar para os seus perigos não estava a ser suficiente. Precisavam de algo que gerasse mais imediatismo. “Infelizmente, é quase preciso chocar a sociedade para ela prestar atenção”, diz Margarida Henrique, que também integra o núcleo português do grupo internacional.
A bióloga de 28 anos diz que o Scientist Rebellion e outros grupos recorrem à desobediência civil, pois ela já levou, no passado, à conquista de “direitos que hoje são básicos”. Dá o exemplo de Rosa Parks, activista que, famosamente, desobedeceu a um motorista que ordenou que a afro-americana cedesse o seu lugar de autocarro a um homem branco.
Revelando que duas cientistas portuguesas já foram detidas na sequência dos protestos na Alemanha, Margarida Henrique admite recear as consequências de desafiar a lei. “Mas as consequências de não fazermos nada serão piores”, diz.
Por sua vez, João Carvalho entende que os constrangimentos provocados pelas acções de desobediência civil merecem ser algo relativizados. “Qualquer disrupção momentânea, como o corte temporário de uma rua, é menos disruptiva do que o caos que pode vir a instalar-se, se não mudarmos as políticas climáticas”, diz o biólogo de 30 anos.
“Não há acção política de rua que não seja incomodativa”
A socióloga Luísa Schmidt acredita que estas acções de desobediência civil alienariam o público geral, fazendo mais mal do que bem à causa ambientalista, se fossem violentas. Mas não são, acredita. “São, sim, incomodativas. E é verdade que as pessoas não gostam de se sentir incomodadas, mas não há acção política de rua que não seja incomodativa”, diz. E acrescenta: “Ninguém vai ficar contra os sindicatos, porque eles cortam as ruas durante uma manifestação.”
Enquanto os protestos climáticos forem “acções efémeras que, sendo incomodativas, não ascendem ao patamar da violência”, serão boas chamadas de atenção para “aquela que é a violência das alterações climáticas”, continua Luísa Schmidt, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa. “Manifestações deste género fazem parte da democracia e sempre fizeram”, reforça.
Falta pouco para a COP
Maria Santos, da associação ambientalista Zero (cuja intervenção é mais institucional do que a de grupos como o Scientist Rebellion), diz não ser por acaso que temos visto muitos actos de desobediência civil nos últimos dias. Explica que a Cimeira do Clima de 2022 (COP27) está à espreita — arranca a 6 de Novembro — e decorrerá num país com “várias limitações no que diz respeito às liberdades sociais” (o Egipto). “Vamos estar a ter discussões importantes sobre o futuro do planeta num sítio inacessível para os activistas”, que na Escócia, berço da COP26, conseguiram mobilizar-se.
Marta Leandro, da Quercus, acredita que o número de protestos está a subir, porque a “inacção” dos decisores políticos se mantém. “Existe uma crescente impotência em relação a anseios colectivos” que está a contribuir para o actual cenário, diz, antes de frisar que, na sua óptica, os activistas procuram ser incómodos sem causar danos irreparáveis. Diz que as jovens que atiraram sopa ao quadro de Van Gogh, por exemplo, terão tido o cuidado de escolher uma obra que estava protegida por um vidro. “Não houve intenção de destruir o quadro, pelo que li na imprensa internacional.”
Somam-se as detenções
Estas acções de desobediência civil têm levado a diversas detenções. As activistas que fizeram o seu protesto envolvendo Girassóis (assim se chama a obra de Van Gogh) compareceram em tribunal e, se forem consideradas culpadas pelos danos causados à moldura, poderão ter de pagar até 5000 libras (cerca de 5700 euros).
Só nos primeiros 11 dias de Outubro, a Polícia Metropolitana de Londres deteve 388 activistas dos grupos Just Stop Oil, que bloqueia estradas para tentar interferir com o fornecimento de petróleo, e Animal Rebellion, movimento com pessoas que, pedindo uma transição para uma dieta à base de plantas, têm protestado em supermercados e lojas: esvaziam pacotes de leite, derramando-o para o chão e sobre bens de consumo.
Apesar das detenções, o comissário da Polícia Metropolitana de Londres, Mark Rowley, tem sido moderado nas suas críticas. “A lei é muito clara: apenas bloquear uma estrada não é automaticamente uma disrupção séria”, disse, citado pelo jornal local LondonWorld.
Contestação em tempos de radicalismo político
Marta Leandro, vice-presidente da Quercus, reconhece que há grupos cujas acções acabam por ser mais dirigidas “aos cidadãos do que às entidades públicas”. Estes grupos — como o Tyre Extinguishers, cujos elementos esvaziam pneus de SUV em protestos contra as emissões dos automóveis — podem não estar a optar pela via “mais inteligente”, mas os protestos do Just Stop Oil e dos movimentos com o apelido Rebellion não estão necessariamente a ficar mais violentos, acredita a vice-presidente da Quercus, que aqui partilha da visão de Luísa Schmidt. O que está a acontecer, argumenta, é que o limite da legalidade está a ser ultrapassado mais vezes.
Manuel Meirinho, professor universitário que lecciona na área da cidadania política, entre outras, também não sabe se “violência” é o melhor termo. Prefere dizer que estão a surgir “fenómenos mais contestatários”, numa altura em que o panorama político testemunha a “emergência de radicalismos” que não valorizam o diálogo.
O jurista André Lamas Leite diz que, em vários protestos, diferentes direitos entram em conflito. No caso da mobilização junto à sede da Galp, ao abrigo da qual activistas do Climáximo se colaram às portas do edifício, o direito à manifestação colidiu com o direito à propriedade privada. “Uma manifestação em frente a um edifício é permitida, mas não pode pôr em causa o direito de circulação e acesso ao edifício”, diz o também jurista Rui Pereira.
O que deve a Justiça fazer, quando isto acontece? “Cada caso deve ser analisado individualmente, mas tem de haver uma ponderação entre a liberdade de expressão e os danos causados. Se os danos são diminutos, os tribunais podem favorecer a liberdade de expressão. E é isto que, regra geral, tem acontecido”, explica André Lamas Leite.
Matilde Ventura foi uma das activistas do Climáximo que foram detidas pela polícia. Terá de cumprir serviço comunitário. Mas a punição não a dissuadirá de continuar a protestar, diz. E a jovem recusa a noção de que os protestos climáticos estão a ficar mais agressivos. “A única coisa que está a ficar mais agressiva é a crise climática. Está a haver uma escalada do problema e o tom da nossa resposta está a subir proporcionalmente. Não podemos continuar a fazer o que sempre fizemos”, observa, indicando que, na sua óptica, a era das marchas acabou.
“Não posso ponderar não continuar a protestar. Não é uma opção. O meu futuro está em causa, tenho projectos de vida que estão comprometidos”, continua, acrescentando que nunca nos seus protestos magoará “uma outra forma de vida”.
Ideal Maia, outra das activistas que foram detidas na segunda-feira, explicou esta quarta-feira ao PÚBLICO que recorre à desobediência civil — e não às tradicionais “petições e manifestações” em que “o movimento ambientalista passou 50 anos” a apostar —, porque, diz (apresentando um argumento idêntico ao de Matilde Ventura), o planeta está a ficar sem tempo para formas de protesto mais tímidas. “Já não estamos a caminhar para o caos climático. Já estamos nele”, afirma.