Putin anexa regiões da Ucrânia e ataca Ocidente “colonizador”

Presidente russo pediu um cessar-fogo ao “regime de Kiev” e acusou “os anglo-saxões” de terem sabotado os gasodutos Nord Stream.

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Vladimir Putin depois de assinar os tratados com os líderes pró-russos MIKHAIL METZEL/SPUTNIK/KREMLIN POOL/EPA

A anexação pela Rússia de quatro regiões ucranianas sob ocupação militar russa ficou tratada em cinco minutos. Vladimir Putin e os líderes pró-russos de Donetsk, Lugansk, Zaporijjia e Kherson assinaram os documentos, escutaram o hino russo, apertaram-se as mãos, bateram palmas e saíram da majestosa sala do Kremlin onde a cerimónia decorreu.

Antes, porém, a grande plateia de deputados, ministros, governadores regionais e membros da Igreja Ortodoxa ouviu o Presidente da Federação Russa atacar violentamente o Ocidente durante 45 minutos.

Vladimir Putin assina a anexação de regiões ucranianas: "é a vontade de milhões de pessoas" Imagem: Reuters. Edição: Joana Gonçalves

A primeira parte do discurso foi dedicada às regiões anexadas, embora não tenha ficado claro se a Rússia declara jurisdição mesmo sobre as partes do território que ainda não controla ou se as suas fronteiras terminam onde agora é a linha da frente de batalha. “As pessoas fizeram a sua escolha e esta não deixa quaisquer dúvidas”, disse Putin, referindo-se aos resultados dos pretensos referendos que não são reconhecidos pela comunidade internacional. “É a vontade de milhões de pessoas”, afirmou o chefe de Estado russo, acrescentando que “é o seu direito natural”.

Procurando legitimar os pretensos referendos e a anexação, Vladimir Putin citou a Carta das Nações Unidas, que reconhece o direito à autodeterminação dos povos. Mas, na quinta-feira à noite, o secretário-geral da ONU escreveu no Twitter que “a Carta é clara” e que “qualquer anexação de território de um Estado por outro Estado em resultado de ameaças ou do uso da força é uma violação dos princípios da Carta e da lei internacional”.

No seu discurso, Putin fez uma longa resenha histórica para justificar a anexação. “A nossa história comum foi passada de geração em geração” e “em 1991, sem se perguntar nada às pessoas, elas foram desligadas da sua pátria” foram duas das frases que utilizou, antes de terminar com uma garantia: “Quero que o regime de Kiev e os seus verdadeiros mandantes do Ocidente me oiçam bem: as pessoas destas regiões passam a ser nossos cidadãos – para sempre.”

Foi neste ponto que o Presidente russo apelou “ao regime de Kiev” para “que opte por um cessar-fogo imediato e que regresse à mesa das negociações”. Mas estes territórios não são discutíveis, acrescentou. “Vamos proteger a nossa terra com todos os meios que tivermos à nossa disposição e fazer tudo para proteger o nosso povo. Esta é a nossa grande missão de libertação”, declarou. Ao contrário do que fez na semana passada, desta feita não houve uma menção explícita a armas nucleares.

Ocidente “espalha russofobia”

Na cerca de meia hora que se seguiu, o discurso de Putin foi dedicado a criticar o Ocidente, em particular os Estados Unidos, falando sobre as bombas atómicas em Hiroxima e Nagasáqui, as guerras da Coreia e do Vietname, a escravatura e até sobre educação sexual e identidade de género.

“Depois do colapso da União Soviética, o Ocidente pensou que todos tinham de se submeter à sua vontade. Acreditava que a Rússia não recuperaria, mas a Rússia tornou-se mais poderosa e ocupou o lugar que merecia”, disse o chefe de Estado russo. “O Ocidente tem procurado todas as oportunidades para enfraquecer e destruir a Rússia”, acusou.

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Com que objectivo? “Eles não querem que sejamos livres, querem tornar-nos uma colónia. Querem que sejamos escravos e não cidadãos livres. O nosso bem-estar e o nosso desenvolvimento não são bem-vistos por eles”, desfiou Putin. “A Rússia será sempre a Rússia. Continuaremos a defender os nossos valores.”

O Presidente russo põe mesmo em causa os acordos internacionais, acusando o Ocidente de os manipular a seu favor. “O Ocidente colectivo decidiu unilateralmente quem tem e quem não tem o direito à autodeterminação. Quem lhes deu esse direito? É por isso que ficaram tão irritados com a escolha das pessoas da Crimeia e destas regiões”, exemplificou. O Ocidente, disse Putin, tem uma atitude “colonial” e “racista” porque “espalha russofobia pelo mundo”.

Acusando os Estados Unidos de terem sido o único país até hoje a usar bombas atómicas numa guerra e os britânicos de terem bombardeado cidades alemãs na Segunda Guerra Mundial, Putin também acusou “os anglo-saxões” de terem “organizado explosões nos gasodutos [Nord Stream] no mar Báltico”.

Ataque fora do comum

Apesar da condenação generalizada a nível internacional, a anexação foi motivo para festa em Moscovo. Vários palcos e ecrãs gigantes foram montados nas imediações da Praça Vermelha, em frente ao Kremlin, onde esta sexta-feira vai decorrer um concerto, e o canal de televisão Rossiya 24 teve um relógio a fazer a contagem decrescente até à cerimónia.

A assinatura dos tratados foi precedida pelo reconhecimento da independência de Kherson e Zaporijjia por Vladimir Putin. Nenhuma destas regiões, assim como as autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, estão inteiramente sob controlo militar russo ou dos seus aliados separatistas.

Segue-se agora a validação das anexações pelo Tribunal Constitucional russo e a sua aprovação pela Duma (Parlamento), que terá de alterar os limites da Federação Russa na Constituição. Por fim, o assunto volta à mesa de Vladimir Putin para uma assinatura final. A anexação destes territórios não deverá ser reconhecida por grande parte dos países.

O analista político Mark Galeotti, que tem vários livros sobre a Rússia de Putin, diz que o Presidente russo “acredita genuinamente que está numa luta civilizacional contra o Ocidente” e que, portanto, “a guerra não tem só que ver com a Ucrânia”. No Twitter, Galeotti escreveu: “Para um homem alegadamente confiante e sereno com as suas decisões, ele passa mesmo muito tempo a dar justificações complexas e cada vez mais conspirativas. Não consigo deixar de achar que muito disto é para si próprio, não para o povo russo, nem para o mundo lá fora.”

Já Max Seddon, correspondente de longa data do Financial Times em Moscovo, sublinha que é hábito Putin fazer discursos de ataque ao Ocidente, mas que este é um “ataque mesmo devastador”, que foge à norma de anteriores declarações.

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