Ascensão da extrema-direita na Europa
Os principais pilares que sustentam a democracia estão em progressiva degradação, o que cria condições propícias para o crescimento de argumentos populistas, racistas e classistas.
O problema é, sem dúvida, complexo, mas merece uma atenção especial, dados os perigos que encerra. Na argumentação usarei o exemplo da situação de Portugal, por ser a que julgo conhecer melhor.
A democracia tem vindo a enfraquecer e a gerar anticorpos que a podem fazer implodir num futuro não muito distante. Não precisamos de ser grandes pensadores para constatar o óbvio. Os principais pilares que sustentam a democracia estão em progressiva degradação, o que cria condições propícias para o crescimento de argumentos populistas, racistas e classistas.
Comecemos com a justiça. Pouco há mais a dizer do que o que foi brilhantemente exposto no artigo A democracia à defesa, de António Barreto, no passado domingo. Os casos, sobretudo os chamados megaprocessos, recorrem a mil e uma artimanhas, absurdamente legais, para adiar julgamentos até à prescrição. Entretanto os indiciados passeiam-se ostensivamente, violando regras, intervindo no espaço mediático como vítimas de conjuras, tudo à vista do incauto cidadão. Tudo isto perante juízes impotentes, à mercê de advogados astutos e seus escritórios, gerando lucros fabulosos à custa desta completa inépcia e, finalmente, perante políticos que pura e simplesmente sacodem a água do capote, exceto quando implicados, porque “à justiça o que é da justiça e à política o que é da politica”, como repetem hipócrita e insistentemente.
Continuemos com a economia paralela e consequente evasão e fraude fiscal. No último estudo feito pelo Observatório de Economia e Gestão de Fraude, em 2015, a economia paralela valia 27,29% do PIB oficial, o correspondente a 49 mil milhões de euros -- um valor capaz de suportar o orçamento do Ministério da Saúde durante cinco anos. Em 2020, Óscar Afonso, presidente do OBEGEF, previa que a covid-19 faria com que o peso da economia paralela no PIB aumentasse significativamente.
Passemos à Educação. A transmissão de conhecimentos continua a ser, na minha opinião, a componente principal do ensino. Isso não implica atitude passiva. Tudo depende das metodologias adotadas. O equívoco tem sido acreditar que chavões como o “ensino pela descoberta”, “aprender a aprender”, e discussões completamente estéreis sobre avaliação, competências, capacidades, conhecimento, projetos Maia e afins, com que se entretêm os chamados “cientistas” da educação, levam a uma maior eficácia das aprendizagens, quando o seu resultado prático tem sido uma escola cada vez mais frágil, mais burocratizada, mais confusa e mais desprestigiada no seu papel crucial de formação de cidadãos lúcidos e cultos. Quem sofre são sempre os professores e alunos e, em última instância, a sociedade em geral.
A escola perdeu o seu estatuto de elevador social. Quem tem dinheiro desloca os seus filhos para o ensino privado, e/ou entra na rede de explicadores. Quem não tem dinheiro, ou ainda reconhece alguma importância ao ensino ou, pura e simplesmente, abandona os filhos à sua sorte. A escola pública é atualmente um dos grandes fracassos da democracia, com professores a trabalhar em condições paupérrimas e com baixíssimos salários, tendo que aguentar a indisciplina de alunos cada vez mais indiferentes e insolentes, para quem a escola não diz absolutamente nada.
A distribuição de riqueza, a produtividade e os baixos salários, e a esmagadora carga fiscal, para quem dela não foge, são fatores de trágica desagregação social. Hoje a sociedade cinde-se em dois grupos, um pouco numeroso que acumula a maior percentagem de riqueza produzida, e a grande massa cujas condições de vida se degradam cada vez mais, agravadas agora pela inflação e aumento de preços, provocados pela repugnante agressão russa e pela ameaça de escalada na guerra, agora anunciada a uma escala inimaginável.
A incompetência e a mentira. Dois temas que entraram recentemente no discurso presidencial, o primeiro de forma explícita e o segundo de forma mais subtil. Chega a ser penoso ver as sucessivas mentiras que responsáveis governativos repetiram sobre o óbvio recuo (mas necessário) das pensões. A política partidária tornou-se numa representação encenada (e coreografada), num exercício despudorado de promessas que nunca se cumprem, numa caça desleal ao voto, no desacreditar sem escrúpulo do adversário, num rol de mera propaganda preparada por especialistas da comunicação, contratados a preço de ouro.
E o que dizer da sistemática incompetência na gestão do bem público? Veja-se os 50 anos de discussão sobre a localização de um aeroporto, após mais de 70 milhões gastos em pareceres, e do jogo incontrolável da especulação imobiliária. Recordem-se os 3500 milhões injetados na TAP, para que agora se anuncie de novo a sua reprivatização! Recorde-se a gestão do SNS, e a incompetência de fazer face a lobbies instalados, até de empresas de prestadores de serviços, que fazem um jogo de inqualificável imoralidade.
A democracia está a viver uma prova de fogo com a ameaça da guerra, cujas consequências poderão ser devastadoras se os governos locais não estiverem atentos na ajuda dos mais vulneráveis. Mas a democracia gerou durante estes anos recentes, por via da corrupção, da incompetência, da cobardia, da mentira, da imundice das redes sociais, gerou, dizia, vírus suficientes para a sua lenta autodestruição.
Mas tem também mecanismos de correção de erros, a começar pela liberdade de expressão. Isso exige que tenhamos a coragem de agir, rejeitando estes falsos e incompetentes pregadores de promessas, sejam de esquerda, direita ou dos seus extremos, exige que tenhamos a capacidade de identificar cidadãos independentes, sérios e com sentido de dádiva à causa pública. Se não formos capazes de o fazer, seremos cúmplices e espectadores imbecis, perante a destruição do maior legado da humanidade – a democracia e a liberdade.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico