Afinal, a água do Douro que a Espanha está a guardar faz falta a Portugal
Portugal e Espanha prometem realizar, durante do próximo trimestre, uma reunião de alto nível para balanço do ano hidrológico e para discutir medidas a tomar para responder à escassez de água e à seca na Península Ibérica.
Portugal e Espanha divulgaram esta quarta-feira uma “declaração conjunta” que confirma o travão das transferências das águas do Douro que estavam previstas no cumprimento da Convenção de Albufeira, que rege as relações entre os países ibéricos nos rios que partilham. Apesar de parecer agora que a decisão foi tomada de comum acordo, a inesperada redução da água que chega a Portugal pelo Douro pôs a descoberto uma série de problemas.
Há o silêncio e aparente inacção de estruturas e instrumentos criados para gerir os interesses do país neste domínio, há avisos sobre a degradação da qualidade da água e sobre a falta que vai fazer do lado de cá e há ainda a confirmação da empresa que gere barragens no Douro sobre o impacto na produção de energia da decisão tomada agora pelas autoridades.
A Movhera, empresa que detém barragens no Douro Internacional, adiantou ao PÚBLICO que a água que entra no Douro, vinda de Espanha através da fronteira entre Espanha e Portugal (Castro), “flui através da cascata de barragens hidroeléctricas do rio Douro, nomeadamente nas operadas pela Engie Hidroeléctricas do Douro para a Movhera”. Assim, “as variações recentes dos fluxos hídricos nesta região tiveram um impacto directo na produção de energia destas barragens”.
O investigador da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) Rui Cortes tem muitas reservas sobre a actual situação que nos últimos dias levou Portugal e Espanha a a decidir uma mudança de rumo nos destinos da água do rio Douro. Em declarações ao PÚBLICO, o especialista considera “incompreensível'’ a apatia e a falta de intervenção da Comissão de Acompanhamento e Desenvolvimento da Convenção (CADC).
Este organismo tem por função assegurar “a protecção das águas superficiais e subterrâneas e dos ecossistemas aquáticos e terrestres deles directamente dependentes” nas bacias hidrográficas dos rios transfronteiriços (Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana).
Mas se “se for consultar o site deste organismo [ver-se-á] que a documentação mais recente é de há quatro anos”. O PÚBLICO confirmou que o último relatório de actividades é de 2009. Com efeito, os mecanismos criados, como a CADC, “não funcionam”, reconhece o investigador da UTAD, salientando que tanto a monitorização dos caudais como a fiscalização da Convenção de Albufeira não funcionam. “Até o Conselho Nacional da Água não se reúne há três anos”, denuncia Rui Cortes, que faz parte deste órgão.
Os instrumentos que visam a gestão, a protecção e a valorização ambiental, social e económica das águas, como contemplam os planos de gestão de região hidrográfica (PGRH) como o que está a decorrer neste momento para o período de 2022/2026, “não apontam para uma maior articulação com Espanha”. E as consequências observam-se na qualidade, que está a sofrer uma progressiva degradação, quando o prazo é cada vez mais reduzido para cumprir a directiva comunitária que impõe a sua melhoria.
Os constrangimentos provam que “não há trocas bilaterais de informação” entre os dois países ibéricos e, desta forma, os recursos hídricos acabam por ser “secundarizados por falta de interesse”. As administrações regionais hidrográficas, o equivalente às confederações hidrográficas espanholas, com o decorrer dos anos, “perderam poderes e autonomia financeira e ficou tudo centrado na Agência Portuguesa do Ambiente”, critica Rui Cortes.
Acresce que em Portugal “não há vontade em rever a convenção com receio de que os espanhóis reduzam os débitos e depois ficamos dependentes de decisões unilaterais”, acrescenta o investigador, prevendo que as guerras da água “vão ser cada vez mais frequentes e mais intensas do lado espanhol onde é previsível o aumento da área regada com culturas intensivas e o uso de agrotóxicos, tal como em Portugal”, acentua.
O Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) português divulgou esta quarta-feira um comunicado, em que refere que o ano hidrológico de 2021/22 “tem sido extremamente exigente” em relação à gestão dos recursos hídricos, em resultado da seca severa que se vem sentindo em Portugal e em Espanha. E que no ano hidrológico que termina a 30 de Setembro “foram cumpridos e largamente superados os caudais semanais e trimestrais por parte de Espanha”, nos rios internacionais abrangidos pela Convenção de Albufeira.
Espanha não vai cumprir convenção
Contudo, apesar do esforço realizado e estando a terminar o ano hidrológico, “Espanha não irá cumprir os caudais anuais nos rios Tejo e Douro, que se antecipa que fiquem em cerca de 90% dos valores estabelecidos na convenção”, confirma o MAAC.
Esta decisão antecipa o que as previsões meteorológicas prevêem para os próximos meses. A precipitação deverá continuar abaixo dos registos médios nos próximos meses, e é “fundamental acautelar as disponibilidades hídricas e gerir de forma coordenada a libertação de caudais no início do próximo ano hidrológico, observa-se no comunicado.
Os dois países acordam reforçar a coordenação da gestão da água, melhorar os diagnósticos e solucionar “constrangimentos estruturais” que comprometem o cumprimento dos objectivos estabelecidos na Convenção de Albufeira e dos objectivos da Directiva-Quadro da Água.
Durante o próximo trimestre, Portugal e Espanha vão realizar uma reunião de “alto nível” para balanço do ano hidrológico 2021/22 e para “planear o futuro da temática da escassez de água e da seca na Península Ibérica”.
Acção concertada de autarcas do lado de cá?
No centro da cidade espanhola de Leão, milhares de agricultores espanhóis gritaram na passada semana a sua revolta contra o envio para Portugal de 400hm3 de água para o troço português do rio Douro, inconformados com o destino que iria ser dado a tão volumoso caudal: a produção de energia hidroeléctrica.
No entanto, do lado de cá, Helena Barril, presidente da Câmara de Miranda do Douro, sublinha que há outros destinos para a água que corre no curso do rio em território português: a satisfação das necessidades do consumo humano, a agricultura e o abeberamento dos animais. A água que Portugal espera de Espanha pelo Douro não é só para a produção de energia.
“Captamos do rio a água que fornecemos a uma população de 6500 habitantes”, explica a autarca eleita pela coligação PSD-CDS que diz também ter direito à revolta contra a atitude dos governos espanhol e português. “É triste observar como o Governo português anuiu ao que se está a passar como se fosse uma situação normal”, prossegue a autarc, dando conta do drama que assola “muitos agricultores forçados a recorrer à água tratada para abeberamento dos seus animais”.
Perante este quadro, Helena Barril critica o Governo português por não lhe ter dado “qualquer indicação sobre o procedimento de Espanha”, referindo que soube através do PÚBLICO e de outras notícias o que estava a acontecer. E o resultado dos últimos envios de água para Portugal está expresso na redução de caudais, quando aguardava agora o seu envio para melhorar a qualidade e quantidade de água no Douro. “É a primeira vez que estou confrontada com um problema que é muito grave”, lamenta. No entanto, já observou em anos anteriores um menor nível de armazenamento nas barragens espanholas.
A autarca encontra uma justificação para a indiferença das autoridades portuguesas dando conta de que “há factores de diferenciação para os territórios de baixa densidade”, o que pode ser exemplificado com o envio de água de Espanha para Portugal. “Nós, afinal, não contamos para nada. As decisões são tomadas e só sabemos o que se passa quando nos deixam entre a espada e a parede”, critica.
Todos os concelhos que o rio Douro atravessa vão sentir o mesmo problema, admite Helena Barril, destacando outro dos impactos resultantes da redução do caudal no Douro. “A carga poluente que nos chega de Espanha é tão elevada”, diz. E a abundância de detritos e de nutrientes causa problemas nas bombas de captação. “A água vem carregadíssima de porcaria”, sintetiza a autarca de Miranda do Douro, admitindo que os autarcas dos concelhos atravessados pelo curso do Douro poderão vir a reunir-se para tomar “uma atitude concertada”.