Pinhal de Leiria: Estado recebeu 17 milhões de euros mas só vai investir 8,3 milhões de euros até 2025
A destruição do Pinhal de Leiria pelos fogos de 2017 e pela tempestade Leslie resultou numa receita de 17 milhões de euros para o Estado com a venda da lenha que restou. Porém, a lenta recuperação desta área só vai custar 8,3 milhões de euros até 2025. Apesar das críticas, mais de três quartos da Mata Nacional de Leiria será ocupada por pinheiros-bravos.
A recuperação da Mata de Leiria prevê um investimento do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) de cerca de 8,3 milhões de euros, nos projectos vindos de 2018 e naqueles que serão executados entre 2022 e 2025. Porém, com a venda da lenha ardida em 2017 e danificada pela tempestade Leslie um ano depois, o Estado recebeu 17 milhões de euros. O ICNF justifica, no entanto, que o custo total das acções durante o período de vigência do Plano de Gestão Florestal (PGF) desta mata, que se estende até 2038, será “muito superior ao valor da receita obtida com a venda dos salvados”.
Depois dos incêndios de 2017 e dos danos causados pela tempestade Leslie em 2018, a reflorestação no Pinhal de Leiria será feita sobretudo com uma espécie. Até 2038, o objectivo é que pelo menos 76% da Mata Nacional de Leiria (MNL) seja composta por pinheiros-bravos (8418 dos 11.021 hectares totais), segundo os dados que constam do Plano de Gestão Florestal final desta mata, aprovado em Junho. Ainda que a percentagem de pinheiros-bravos fosse superior antes de 2017, muitos especialistas não concordam que se plante uma só espécie em larga escala precisamente por causa do risco de incêndio.
A operação de reabilitação abrange uma área que, frisa o ICNF, abrange cerca de 10.500 hectares. “É o equivalente, para melhor visualização da magnitude do processo de recuperação, à superfície total do município de Lisboa (10.050 hectares).” Quanto aos custos, o instituto esclarece que “o montante global dos investimentos assumidos pelo ICNF, considerando os projectos executados desde 2018 a 2022 e os projectos a executar de 2022 até 2025, totaliza cerca de 8,3 milhões de euros”.
“No que respeita ao valor da venda do material lenhoso ardido, bem como o afectado pela tempestade “Leslie” na Mata Nacional de Leiria, o mesmo cifra-se em 17 milhões de euros”, admitem, adiantando que “o custo total das acções com execução prevista durante o período de vigência do PGF da MNL (2019 -2038) será muito superior ao valor da receita obtida com a venda dos salvados (material lenhoso ardido e com o material afectado pela tempestade “Leslie”), sem que nesse período de tempo se perspective a existência de venda significativa de material lenhoso”. Depois dos incêndios, o ICNF vendeu o material lenhoso da mata e alienou um total de 1,9 milhões de árvores. Para já, o plano aposta no repovoamento da área sobretudo com pinheiros-bravos.
Um mix de espécies
“A ambição devia ter sido maior”, refere Miguel Jerónimo, coordenador do programa de reflorestação Renature. “Um mix de espécies será sempre mais benéfico do ponto de vista da conservação e protecção desta zona”, diz. O professor da Universidade de Trás-os-Montes (UTAD) Rui Cortes fala numa “predominância excessiva” do pinheiro-bravo. O problema, diz, não é só a dominância do pinheiro-bravo mas também não haver uma grande diversificação de espécies.
Além disso, haverá mais pinheiros-bravos do que esses 76% explícitos no documento: a estes hectares juntam-se zonas mistas de pinheiro-bravo com samouco e juniperus (102 hectares), zonas de carvalho português com pinheiro-bravo (75 hectares); zonas de carvalho-roble com pinheiro-bravo (15 hectares) e povoamentos mistos de resinosas e folhosas (857 hectares). Em 2010, a percentagem de pinheiros-bravos já era de 94,7% (10.437 hectares).
A escolha do pinheiro-bravo está relacionada com a “capacidade de suporte de vida do local e das exigências ecológicas de sobrevivência da própria espécie”, esclarece o ICNF ao PÚBLICO confrontado com a posição de alguns especialistas que lembram que preferiam ver ali outras espécies autóctones, incluindo o pinheiro-manso. “Não basta a uma determinada espécie ser autóctone para tal circunstância ser garantia suficiente da sua sobrevivência em qualquer parte do território nacional”, defende o instituto. Em grande parte do Pinhal de Leiria, estas condições são “muito exigentes”.
O plano prevê um aumento da área ocupada com pinheiro-manso, que passa “pela instalação de povoamentos mistos de pinheiro-manso e pinheiro-bravo”, para assegurar uma maior taxa de sobrevivência da espécie. Nas zonas mais próximas da faixa litoral, explica o ICNF, a plantação de pinheiros-mansos é dificultada por causa da “exposição directa à carga salina e à força dos ventos marítimos”.
“Em solos de areia pobres em nutrientes, o pinheiro-bravo (Pinus pinaster Aiton) é a espécie autóctone dominante”, lê-se ainda no plano de gestão elaborado pelo ICNF. No entanto, no documento reconhecia-se também a “oportunidade” de “reconverter áreas que estavam ocupadas por pinheiro-bravo, recorrendo a outras essências florestais”.
Em Janeiro, o secretário de Estado das Florestas afirmava já que o objectivo era interromper as manchas de pinheiro-bravo com outras espécies, numa lógica de prevenção de incêndios. Só que as condições do solo faziam com que tal não fosse possível. “Vamos ter algumas áreas de outras espécies, mas muito pouco em relação ao que gostaríamos”, afirmava.
“Estamos a falar de solos arenosos, pobres, com níveis de salinidade elevados pela presença próxima do mar. As opções não são muitas”, diz o especialista Paulo Pimenta de Castro. Nas outras espécies, “o risco de insucesso é grande”. Mas é imperioso “criar algumas descontinuidades”, sobretudo numa altura em que as secas, as ondas de calor e restantes efeitos das alterações climáticas podem facilitar a propagação das chamas. Para Rui Cortes, a plantação de pinheiro-manso seria “importantíssima”.
As zonas que tenham quase só pinheiro-bravo adulto são também “muito susceptíveis a pragas e doenças”, indica o plano de gestão florestal. Essas áreas podem vir a “constituir áreas de risco do ponto de vista da sanidade florestal”.
Prevenção com limpeza dos matos
Antes, havia mais de 10 milhões de árvores na Mata Nacional de Leiria – a maior parte eram pinheiros-bravos. “Não faz sentido ser só uma espécie, de maneira nenhuma”, assevera Gabriel Roldão, estudioso do Pinhal de Leiria. “Mas também não faz sentido serem espécies que não se dão”.
Ainda assim, há quem discorde de que a mata não possa ser feita (quase) só de pinheiros-bravos. “Conhecemos isto como o Pinhal do Rei. É natural que o que seja plantado seja pinhal”, afirma o presidente da Câmara da Marinha Grande, Aurélio Ferreira. Também o engenheiro silvicultor Octávio Ferreira não vê problema em existir sobretudo uma espécie. “Isto aqui são areias muito pobres e o pinheiro-bravo é uma das poucas espécies que aqui se dá bem. Não podemos estar aqui a plantar árvores que depois secam a seguir”. Enquanto caminha pelo pinhal, aponta para um medronheiro viçoso, em comparação com outras folhosas que ficaram secas. “Eles aparecem quando entendem que devem aparecer”.
A tónica, diz, está na limpeza dos matos. Acredita que o pinhal ardeu em 2017 por causa da quantidade de combustível na mata. “Se não se limpar os matos, as outras árvores ardem de igual maneira.” Em 2017, Rui Cortes concorda que se deixou acumular “demasiado material biocombustível”. A rede primária da defesa da floresta contra incêndios também devia ser alargada, defende, já que é “insuficiente” para a Mata Nacional de Leiria.
No plano de gestão florestal, é referido que os incêndios de 15 de Outubro que deflagraram em zonas exteriores ao pinhal foram fomentados pela “vegetação relativamente uniforme nalguns locais, terreno plano e condução pelo vento”. O pinhal de Leiria ficou vestido de negro, com as árvores mortas erguidas das cinzas. “Quem visitar hoje a Mata Nacional de Leiria e a conheceu anteriormente, pensa que está num mundo diferente”, diz Rui Cortes. “É completamente chocante.”
Críticas ao plano que levou “tempo demais”
Com o incêndio e a passagem da tempestade Leslie, o plano de gestão florestal que existia para a Mata Nacional de Leiria, datado de 2012, ficou “obsoleto”. Agora, o novo plano de gestão florestal abrange os anos de 2019 a 2038. Segundo o ICNF, o plano de gestão florestal foi aprovado a 17 de Junho deste ano e “encontra-se em aplicação plena e efectiva”. A responsabilidade legal pela redacção do relatório “recai exclusivamente no ICNF”, tal como a gestão da Mata Nacional de Leiria.
O relatório surge quase cinco anos depois dos fogos. “É tempo demais para intervir numa mata tão importante como é a Mata Nacional de Leiria”, critica o investigador Rui Cortes, dizendo que deveria existir “um modelo de gestão muito mais abrangente, que não fosse só dependente do ICNF”.
O plano de gestão florestal apresentado no início do ano esteve em consulta pública e recebeu críticas negativas por parte de especialistas, associações ambientais e autarquias. Desde aí, foram feitas poucas alterações. A consulta pública decorreu de 12 de Janeiro a 1 de Fevereiro e foram recebidas 21 participações escritas de cidadãos e de organizações não-governamentais. Em resposta ao PÚBLICO, o ICNF diz que daí resultaram “alterações de diversa ordem e com diferente expressão na versão final” do documento.
Uma das principais alterações, lê-se no email de resposta às perguntas enviadas pelo PÚBLICO, está relacionado com as areias móveis. “Procedeu-se à alteração das espécies a plantar em cerca de 650 hectares (o pinheiro bravo que inicialmente era a única espécie a instalar nessa vasta área foi substituído por uma composição mista de espécies a plantar - pinheiro-bravo, pinheiro-manso, pinheiro-de-alepo, samouco e juniperus).” Tanto o plano de gestão como o relatório da consulta pública podem ser consultados aqui.
Rui Cortes insiste que muitas considerações feitas ao longo de todo o processo não foram tidas em conta. “Há aqui uma ideia de auto-suficiência que não é muito desejável, especialmente quando se quer que a mata de Leiria tenha uma função biodiversa, uma função multifuncional, virada para as comunidades locais.” Também Miguel Jerónimo, do Geota, diz que este plano é um “avanço face ao passado”, mas acredita que o modelo de gestão deveria ser mais participativo. Em resposta às críticas, o ICNF diz que desde 2018 recolheu propostas e informações da sociedade civil, da academia, de cientistas, ambientalistas e autarcas que veio a utilizar no plano de gestão florestal.
No plano de gestão, está previsto um aumento da zona de protecção (como a fixação de areias móveis e protecção contra incêndios ou erosão eólica) e uma redução da zona de produção de madeira. O antigo dirigente e técnico do ICNF Octávio Ferreira acredita que este plano de gestão desvirtua os anteriores. O pinhal tem um historial produção de material lenhoso de modo sustentado que perdurou durante mais de 700 anos, diz.
Já Rui Cortes acredita que havia “uma visão conservadora em relação à floresta”, ainda muito focada na produção de material lenhoso. Mas não é o único desafio: “O problema deste plano de gestão florestal é que ele foi feito de uma maneira muito autocrática em que não foram ouvidos nem tidos em conta pareceres de entidades que têm acompanhado esta situação”, critica Rui Cortes, dando o exemplo da Câmara da Marinha Grande, do Observatório Pinhal do Rei e da própria sociedade civil. Certo é, nota, que se esperou “tempo demais”.