Morreu o “Índio do Buraco”, talvez o último da sua tribo na Amazónia

Homem indígena viveu décadas de isolamento voluntário na floresta do estado brasileiro de Rondónia. Activistas lamentam a perda de mais uma língua e cultura.

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O "Índio do Buraco" numa imagem rara, captada pela Fundação Nacional do Índio à distância FUNAI

O “Índio do Buraco”, como era conhecido um misterioso homem indígena que, para se proteger de invasões territoriais e outras ameaças, passou várias décadas a viver uma vida de isolamento na floresta da Amazónia, foi encontrado morto na última terça-feira (23 de Agosto) pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Acredita-se que era o último membro da sua tribo, acerca da qual não se conhecem muitos detalhes — e que agora terá deixado de existir.

O “Índio do Buraco” ganhou essa alcunha porque todas as palhotas que construiu e onde viveu tinham no interior um buraco, que podia servir enquanto esconderijo. O homem indígena era um hábil criador de armadilhas, que preparava para impedir a aproximação de pessoas estranhas.

“Ele não confiava em ninguém porque teve muitas experiências traumatizantes com pessoas não indígenas”, explicou ao jornal britânico The Guardian Marcelo dos Santos, da Funai, organismo do Governo federal brasileiro que é responsável sobretudo pela demarcação de terras para os povos originários.

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"Índio do Buraco" FUNAI

De acordo com Marcelo dos Santos, a Funai passou mais de 25 anos a monitorizar o bem-estar do “Índio do Buraco” à distância. Quando a fundação deixava, em locais estratégicos da vasta floresta amazónica, comida e ferramentas que pudessem ser usadas pelo indígena, as “prendas” nunca eram recolhidas.

O Guardian explica que, na década de 1980, a tribo do “Índio do Buraco” terá sido fatalmente enganada por um grupo de fazendeiros, que, depois de terem deixado oferendas de açúcar em pontos diversos do território ocupado pela tribo, terão dado veneno para ratos, que terá levado à morte de todos os membros da comunidade, excepto o “Índio do Buraco”.

Tendo testemunhado “massacres atrozes” e invasões da terra onde vivia, “rejeitar interagir com pessoas de fora” foi a estratégia que encontrou para sobreviver, disse ao Guardian Sarah Shenker, da Survival International, organização que visa defender os direitos dos povos indígenas.

Teria cerca de 60 anos e a morte deveu-se a causas naturais

A Funai explicou, num comunicado, que o corpo do “Índio do Buraco” foi encontrado na sua rede de dormir. “Não havia vestígios da presença de pessoas no local. Também não havia sinais de violência ou luta. Os pertences, utensílios e objectos utilizados habitualmente pelo indígena permaneciam nos seus devidos lugares”, sublinhou o organismo do Governo federal brasileiro.

“A Funai lamenta profundamente a perda do indígena e informa que, ao que tudo indica, a morte deveu-se a causas naturais”, pode ainda ler-se na nota enviada à imprensa brasileira.

O Guardian refere que o corpo do “Índio do Buraco” foi encontrado em estado de decomposição, enquanto a Funai fazia uma das suas acções de monitorização remota. O indígena terá sido encontrado com penas coloridas espalhadas pelo seu corpo, o que terá levado funcionários da Funai a acreditar que ele sabia que a morte estava próxima. Ainda segundo o jornal The Guardian, a Funai estima que o indígena tinha à volta de 60 anos.

“Por resistir a quaisquer tentativas de contacto, o homem indígena morreu sem revelar nem a que etnia pertencia, nem as motivações por detrás dos buracos que escavava. O ‘Índio do Buraco’ expressava claramente a sua opção pelo afastamento, sem nunca dizer uma única palavra que permitisse a sua identificação com alguma língua indígena conhecida”, escreveu, após a morte do “Índio do Buraco”, o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contacto (ou, simplesmente, OPI).

“A morte do ‘Índio do Buraco’ significa, por um lado, mais um capítulo trágico do persistente processo de genocídio que historicamente aflige os povos indígenas e, por outro, o seu derradeiro e mais extremo acto de resistência”, acrescentou o OPI.

“Mais uma tribo extinta”

A Folha de São Paulo refere que o homem indígena “sobrevivia de modo rudimentar”, comendo milho, batata, cará (um tubérculo), banana e mamão. “Também caçava animais para se alimentar”, acrescenta o mesmo jornal.

Há pouquíssimas imagens do “Índio do Buraco”, cujo isolamento voluntário contribuiu para que se criasse uma onda de misticismo em torno dele. Em 2018, a Funai divulgou imagens inéditas, recolhidas à distância, que mostram o homem indígena a tentar cortar uma árvore.

O “Índio do Buraco” também era conhecido como “Índio Tanaru”, pois vivia na Terra Indígena Tanaru, no estado brasileiro de Rondónia. O OPI explica que a Terra Indígena Tanaru foi estabelecida formalmente em 1997, dois anos após terem sido descobertos vestígios do massacre que vitimou a tribo do “Índio do Buraco”.

A palhota onde o homem indígena foi encontrado morto foi a 53.ª que construiu desde que a Funai começara a monitorizar o seu bem-estar.

“O ‘Índio do Buraco’ foi o último da sua tribo, pelo que esta é mais uma tribo extinta. Não desapareceu, como alguns dizem. Estamos a falar de algo muito mais genocida do que desaparecer”, sublinhou a já referida Sarah Shenker. A activista lamenta a perda de mais uma língua e cultura.

É conhecida a relação polémica que Jair Bolsonaro tem com os povos indígenas do Brasil. O actual Presidente brasileiro já mereceu várias críticas no passado por diversas declarações e decisões políticas entendidas como anti-indígenas.