Tecnologia das criptomoedas entra na luta contra a fome
A tecnologia por detrás das criptomoedas – a blockchain – já está a ser usada em campos de refugiados, quintas, fábricas e supermercados para diminuir a percentagem de alimentos que se estragam. Só que a atenção negativa em torno da bitcoin e outras moedas digitais pode dificultar o processo.
Enquanto o valor das criptomoedas continua a subir ou a cair a pique e a motivar fervorosos debates entre críticos e fãs, a tecnologia por detrás das moedas digitais começa a ser usada para lutar contra a fome e evitar o desperdício alimentar em todo o mundo.
O Programa Alimentar Mundial (WFP, na sigla em inglês) das Nações Unidas adaptou uma plataforma criada para registar transacções com criptomoedas (a chamada blockchain) para distribuir vales de alimentação a refugiados e garantir que a ajuda de diferentes organizações chega a todos.
No Bangladesh e na Jordânia, o projecto Building Blocks, que começou a ser traçado em 2016, já ajuda a alimentar um milhão de refugiados por mês através da blockchain e garantir que não há alimentos mal aproveitados. Quando há uma catástrofe, como as explosões de 2020 em Beirute, o sistema contribuiu para distribuir equitativamente a ajuda.
“Em vez de criptomoedas, que têm um valor muito volátil e não são aceites em muitos países do mundo, a nossa blockchain regista vales que as pessoas podem usar para alimentar as suas famílias da forma que melhor entendem”, começa por explicar ao PÚBLICO Houman Haddad, líder do departamento de Tecnologias Emergentes no WFP e fundador da blockchain Building Blocks.
“As pessoas podem ir a uma espécie de supermercado e escolher aquilo que querem comer, que sabem cozinhar, em vez de receber, por exemplo, um saco de arroz ou milho”, clarifica Haddad. “Isto permite mais dignidade, mais escolha e pode ser mais eficaz para as pessoas que ajudamos.”
A tecnologia chega numa altura em que cerca 40% dos alimentos produzidos em todo o mundo se estragam antes que alguém os coma – ou porque se danificam pelo caminho, ou porque não chegam a quem precisa. A percentagem, real, foi calculada pelo Fundo Mundial pela Natureza (WWF) e pelo retalhista alimentar Tesco em 2021.
“Quando trabalhamos com ajuda humanitária, geralmente há diferentes organizações a ajudar as mesmas pessoas. Perde-se uma visão global das necessidades”, resume Houman Haddad. “A blockchain resolve o problema.”
A ideia surgiu em 2016 quando Houman Haddad que, na altura, trabalhava no departamento de finanças do WFP, começou a questionar o potencial da blockchain além das criptomoedas. Na altura, o valor da bitcoin, que é a primeira e mais famosa das criptomoedas, ainda não tinha ultrapassado os mil euros (hoje, ronda os 23 mil euros), mas a tecnologia por detrás da moeda já começava a atrair bastante interesse.
Haddad apresentou a proposta ao Acelerador de Inovações do WFP, uma espécie de incubadora de startups criada em 2015 para testar tecnologias (inteligência artificial, blockchain, robótica) que podem ajudar a lutar contra a fome mundial.
“A blockchain é sempre descrita como um sistema complexo, mas não é assim tão complicado”, insiste Haddad. Quem pede ajuda do WFP, não precisa de perceber a tecnologia, ou sequer ter um smartphone ou acesso à Internet, garante.
Blockchain, em resumo
A blockchain é uma espécie de base de dados, que nasceu no meio da crise financeira de 2008, como uma alternativa ao sistema bancário tradicional. Foi pensada por “Satoshi Nakamoto”, de quem nada se sabe além do suposto nome, como uma forma de registar transacções com dinheiro electrónico.
Os registos numa blockchain não podem ser alterados, são públicos (todas as pessoas os podem ver) e não é preciso uma entidade central, como um banco, a controlar o sistema.
Com os anos percebeu-se que a blockchain pode ser usada para fins que não sejam pagamentos e o WFP não é o único interessado. O MIT, o reputado instituto de tecnologia dos EUA, está a experimentar emitir diplomas numa blockchain desde 2017. E desde 2020 que o registo de obras de arte na blockchain (os NFT) se tornou extremamente popular.
Do tomate à pizza
A tecnologia também pode ajudar a identificar problemas nas cadeias de alimentação mais cedo. O que, novamente, pode contribuir para a redução do desperdício.
O IBM Food Trust (algo como Fundo de Confiança da IBM, em português) é uma solução da gigante tecnológica norte-americana IBM para ligar produtores, distribuidores, retalhistas e fabricantes através de uma blockchain.
“Há 40% de alimentos produzidos que se perdem algures na cadeia de produção. A pergunta é onde?”, lembra Leone Lubrano, engenheiro no departamento de soluções sustentáveis da IBM, em conversa com o PÚBLICO.
Os clientes incluem a empresa espanhola Nueva Pescanova, que se especializa na comercialização de produtos de pesca, e a produtora de azeite Hojiblanco que já inclui QR codes (uma espécie de código de barras) nas garrafas para os consumidores consultarem o processo de produção do azeite.
“A tecnologia permite rastrear um produto desde o começo. Por exemplo, desde que os tomates usados numa pizza foram colhidos”, ilustra Lubrano. “Se tudo está registado na blockchain, quando há um problema, é possível perceber-se onde ocorreu.”
O Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia – mais conhecido pela sigla EIT – também está a apoiar o desenvolvimento de várias tecnologias (incluindo a blockchain) que simplificam a rastreabilidade dos alimentos.
Para isto funcionar, claro, é preciso ligar a blockchain a sistemas IoT (sigla inglesa para Internet of Things – Internet das Coisas) que recolhem informação de dispositivos informáticos e sensores numa rede colectiva, e que são cada vez mais comuns.
O paradoxo da blockchain
A promessa da tecnologia no sector agro-alimentar tem motivado vários académicos a explorar o impacto da tecnologia e a possibilidade de regulação.
“A tecnologia blockchain facilita a transparência, a luta contra a fraude e a confiança do público”, sintetiza Isabel Hernandez San Juan, investigadora na Universidade Carlos III, em Madrid, em conversa com o PÚBLICO. Mas alerta: “Existem vários desafios.”
Como coordenadora de um mestrado sobre desenvolvimento sustentável, Isabel Hernandez tem escrito amplamente sobre o potencial e os riscos do uso da blockchain na cadeia alimentar. Um factor a considerar, diz, é a “pegada ambiental que a utilização em massa da tecnologia pode causar.”
A blockchains mais famosas, que foram criadas para transacções com criptomoedas como a ethereum e a bitcoin, são mantidas pelo esforço colectivo dos milhares de computadores ligados à rede. E estes computadores gastam muita energia.
“Em 2018, o processamento [na blockchain] ascendeu a 300 kWh por dia”, partilha Isabel Hernandez. Em média, um cidadão da União Europeia gasta cerca de seis mil kWh num ano, de acordo com os dados mais recentes do Banco Mundial referentes a 2014.
“Estes números deverão aumentar com a sua expansão [das blockchains], daí a importância da inovação na melhoria da eficiência do processamento”, sublinha Isabel Hernandez.
Leone Lubrano garante que o gasto de energia não é um problema na blockchain da IBM. “A maioria das blockchains para criptomoedas assenta no conceito de anonimidade. O nosso não”, detalha.
Nas chamadas blockchains tradicionais, para criptomoedas, os registos são anónimos. Embora as pessoas possam ver quantas criptomoedas há numa carteira, não se sabe de quem é que é a carteira.
“Para a blockchain conseguir validar transacções, num sistema em que é tudo anónimo, é necessário um processo que é extremamente exigente em termos energéticos. Ninguém confia em ninguém, então é necessário encontrar formas de validar transacções através de computação bruta”, ilustra Lubrano. “Mas isso não é eficiente em termos de sustentabilidade.”
O sistema da IBM e o sistema do Programa Alimentar Mundial dependem de uma blockchain com um protocolo de permissão. Nestas blockchains, que são descritas como “privadas”, os gestores da rede têm de autorizar novos utilizadores, cuja identidade conhecem, a fazer parte do sistema.
“Há confiança e por isso não temos de depender de protocolos que exigem um grande nível de energia para validar as alterações feitas à blockchain”, justifica Lubrano. “Também existe mais segurança porque se conhecem todas as pessoas que pertencem à blockchain.”
Lixo dentro, lixo fora?
Vários académicos alertam, no entanto, que o sistema da blockchain para reduzir o desperdício alimentar serve para pouco se a informação registada, ao longo da cadeia alimentar, estiver incorrecta.
“Os dispositivos de IoT [que recolhem dados para a blockchain] podem ter defeitos ou ser inadequadamente utilizados; podem ser adulterados; as comunicações podem ser interceptadas e a veracidade dos dados pode ser comprometida”, escreve um grupo de investigadores da Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, numa análise de 2022 intitulada “Lixo dentro, lixo fora” e publicado na revista académica Journal of Industrial Information Integration.
“Se um utilizador ou um dispositivo registar informações que não são fiáveis ou são falsas, então a blockchain pode prejudicar a confiança dos utilizadores”, resume Shoufeng Cao, um dos autores do artigo de Queensland, ao PÚBLICO.
O pior, nota Isabel Hernandez, é a impossibilidade de apagar erros ou informação registada por engano (por exemplo, dados privados) na blockchain.
“As empresas que operam numa cadeia alimentar podem cometer erros”, constata Hernandez. “A blockchain apresenta uma característica que dificulta o exercício dos direitos de rectificação ou eliminação de dados pessoais, tal como exigido pela regulamentação europeia.”
Dados fora da blockchain
O WFP evita o problema ao barrar quaisquer dados pessoais da blockchain.“A protecção de dados é um assunto muito sério no contexto dos refugiados”, salienta Houman Haddad. O acesso à plataforma é feito com códigos anónimos fornecidos pelo Alto Comissariado para os Refugiados (UNHR, em inglês) aos refugiados.
Um problema maior, diz Haddad, é o acesso à blockchain. A blockchain do WFP foi criada para os refugiados, mas os refugiados ainda não acedem directamente.
Esse é o trabalho de Allen Rollend e de outros como ela. Há dois anos que a bengali, que faz parte do sistema de ajuda alimentar do WFP, usa a blockchain para registar a utilização de vales em Cox Bazar. A cidade, no Sudeste do Bangladesh, é lar do maior campo de refugiados no mundo, com milhares de pessoas em aglomerados populacionais improvisados dependentes de ajuda humanitária.
“[Os refugiados] só precisam de estar presentes num ponto de venda com o seu cartão inteligente [fornecido pela UNHR]”, garante Rollend, ao PÚBLICO. “É a única regra”, continua. “Isto dá mais flexibilidade para as pessoas que recolhem assistência alimentar.”
“Nós não podemos assumir que as pessoas que queremos ajudar têm telemóveis ou acesso à Internet. Especialmente as populações mais vulneráveis, e não podemos deixar essas pessoas de lado”, justifica Haddad.
No futuro, o sistema deve mudar. “Era bom que os refugiados usassem um telefone, conectividade e alguma literacia digital para aceder à blockchain”, reflecte Haddad. “É importante que as pessoas tenham mais controlo. Mas por isso a conectividade em todo o mundo tem de aumentar.”
Fama pelos motivos errados
Uma coisa é certa: o interesse da blockchain para registar e consultar operações na cadeia alimentar já está a aumentar. Dados de 2021 da Emergen Research notam que o mercado de “rastreabilidade alimentar”, que inclui sistemas com a blockchain, já vale 4,54 mil milhões de dólares (4,50 mil milhões de euros à taxa de câmbio actual). Até 2028 deve aproximar-se dos dez mil milhões de euros.
A fama da blockchain é uma das grandes barreira, afirma Haddad: “A associação com as criptomoedas é problemática: quando as criptomoedas estavam em alta havia uma imagem mais positiva do tema”, revela. “Esta fama pode ser difícil de gerir. O tema atrai atenção, mas as pessoas ou adoram a blockchain e ou detestam e não querem saber.”
É um desafio partilhado por várias tecnologias emergentes, argumenta Hila Cohen, que lidera o desenvolvimento do Acelerador de Inovações do WFP. Foi lá que a Building Blocks deu os seus primeiros passos.
“Há sempre riscos”, insiste Cohen ao PÚBLICO. “Riscos da blockchain? Pode-se fazer a mesma pergunta sobre a inteligência artificial. A blockchain é uma tecnologia emergente”, explica. “Qualquer sistema que use a tecnologia da blockchain será complexo”, argumenta. “Mas se ninguém testar a tecnologia, nunca vamos saber como é que a podemos utilizar.”
Haddad mantém-se optimista: “O nosso programa permitiu salvar mais de um milhão e meio de dólares em transferências bancárias e taxas bancárias. Isto permite-nos ter mais dinheiro para ajudar os refugiados com comida e alimentação”, avança. E o programa já está a ser adaptado para incluir outros vales: desde produtos de higiene, cursos e formações ou serviços. “A blockchain nasceu para transferências e registos de coisas que têm valor, está no ADN do sistema.”