Salman Rushdie, esfaqueado durante palestra em Nova Iorque, está ligado a um ventilador
O escritor, que foi atingido no pescoço e no abdómen e submetido a uma intervenção cirúrgica, vai “provavelmente” perder um olho, está ligado a um ventilador e não consegue falar, adianta o agente, Andrew Wylie. Não se conhece a motivação do atacante, Hadi Matar, de 24 anos.
O escritor Salman Rushdie, que durante anos recebeu ameaças de morte pelo seu livro Os Versículos Satânicos, foi esta sexta-feira atacado com uma faca, quando se preparava para dar uma palestra em Chautauqua, no sudeste do estado de Nova Iorque. O estado clínico do autor é incerto, tendo o seu agente literário, Andrew Wylie, avançado que está a ser submetido a uma intervenção cirúrgica, informação entretanto confirmada pelas autoridades policiais.
Segundo a polícia do estado de Nova Iorque, que acorreu ao local do ataque, o escritor de 75 anos terá sofrido ferimentos no pescoço e no abdómen e foi transportado de helicóptero para um hospital vizinho. Ao início da noite, Rushdie ainda estava a ser operado. Horas depois, o agente, Andrew Wylie, avançou que o autor vai “provavelmente” perder um olho, está ligado a um ventilador e não consegue falar.
“As notícias não são boas. Salman [Rushdie] vai provavelmente perder um olho, os nervos do braço foram cortados e o fígado foi esfaqueado e danificado”, disse, citado pelo New York Times.
Henry Reese, o entrevistador que acompanhava Rushdie e que deveria conduzir a palestra, teve alta depois de também ter sido transportado até um hospital para ser tratado a uma ferida na face. Presidente de uma organização que oferece acolhimento a escritores exilados, ameaçados ou perseguidos, a City of Asylum, fundada em 2004 em Pittsburgh, na Pensilvânia, Reese ter-se-á sentido inspirado a criar a organização após ter assistido a uma palestra de Rushdie em 1997.
O autor do ataque, entretanto detido, já foi identificado pelas autoridades nova-iorquinas. Trata-se de Hadi Matar, um homem de 24 anos residente em Fairview, no estado Nova Jérsia, a cerca de 600 quilómetros de Chautauqua. Michael Hill, presidente da Chautauqua Institution, que organizou o evento, confirmou que Hadi Matar tinha bilhete para assistir à palestra.
Em conferência de imprensa, a polícia do estado de Nova Iorque adiantou ser cedo para apontar as motivações do crime e acrescentou estar a trabalhar com o FBI para determinar as causas do ataque.
Nas imagens divulgadas pouco depois do incidente pela agência Associated Press viam-se manchas de sangue no sofá e nos painéis dispostos em cima do palco. Várias testemunhas oculares citadas pela BBC e pelo New York Times referem que o escritor terá sido esfaqueado múltiplas vezes, acabando por cair no chão, onde foi assistido numa área resguardada.
Uma médica que assistia à sessão, Rita Landman, contou ao jornal New York Times que se prontificou a ajudar o romancista após o ataque e que viu que este recebera várias facadas, uma delas no lado direito do pescoço. Acrescentando que se formara, sob o corpo de Rushdie, uma poça de sangue no palco, a médica conta ter ouvido pessoas a dizer: “Ele tem pulsação, ele tem pulsação.”
Outras testemunhas falaram com diferentes órgão de comunicação, mas ainda não é possível ter-se uma ideia muito precisa dos acontecimentos. Sabe-se que o ataque terá ocorrido por volta das 10h45 (hora local), pouco depois de Rushdie subir ao palco do anfiteatro da Chautauqua Institution, um centro cultural que propõe programação artística e literária para jovens durante o Verão.
Um jornalista da Associated Press testemunhou o momento em que um homem invadiu o palco e atacou Rushdie. O autor do ataque vestia de preto e movimentou-se com velocidade-relâmpago, segundo testemunhos recolhidos pelo New York Times. O recinto, onde centenas de pessoas aguardavam a palestra do escritor nascido na Índia e há muito radicado nos Estados Unidos, foi evacuado.
Um repórter do jornal local Buffalo News diz ter ouvido uma testemunha não identificada relatar que o atacante, que envergaria uma máscara preta, saltou para o palco e começou logo a atacar o escritor. Dez ou quinze pessoas que assistiam à sessão terão então acorrido para prestar auxílio a Rushdie e imobilizar o seu agressor. O romancista, diz ainda a mesma testemunha, terá estado uns cinco minutos no chão, antes de ser levado para fora da sala.
Os anos da fatwa
Em 1989, Salman Rushdie foi alvo de uma fatwa do líder religioso iraniano ayatollah Ruhollah Khomeini, que o sentenciou à morte pelo seu romance Os Versículos Satânicos, publicado no ano anterior. O escritor viveu durante uma década na clandestinidade, experiência que viria a revisitar em 2012 no livro Joseph Anton – Uma Memória, cujo título evoca a identidade que assumiu enquanto esteve escondido, a partir da justaposição dos nomes próprios de dois dos seus autores predilectos: Joseph Conrad e Anton Tchékhov.
Em 1998, como pré-condição para restaurar relações diplomáticas com o Reino Unido, o governo iraniano, então liderado por Mohammad Khatami, comprometeu-se publicamente a não patrocinar qualquer tentativa de assassinato do escritor, mas o livro Os Versículos Satânicos é ainda hoje proibido no Irão, e o sucessor de Ruhollah Khomeini na liderança espiritual do país, o ayatollah Ali Khamenei, anunciou em 2005, numa mensagem aos peregrinos de Meca, que a sentença do seu antecessor continuava válida.
Antes disso, em 1997, o ayatollah Hasan Sane'i, líder da fundação 15 Khordad, criada pelo próprio Ruhollah Khomeini para apoiar os mártires e os veteranos da revolução islâmica – o nome é a data (correspondente a 5 de Junho) em que se deu o fracassado levantamento de 1963 contra o regime de de Pahlavi –, anunciara que a instituição decidira aumentar o prémio pelo assassinato de Rushdie dos iniciais dois milhões de dólares para 2,5 milhões.
E em 2007, quando Salman Rushdie foi condecorado pela rainha Isabel II como cavaleiro do Império Britânico, o porta-voz do então ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Mohammad Ali Hosseini, acusou o governo britânico de islamofobia e afirmou que a sentença contra o romancista permanecia em vigor.
Segundo os materiais de divulgação do evento, Rushdie deslocara-se à Chautauqua Institution para participar numa discussão sobre o papel dos Estados Unidos enquanto país de acolhimento de escritores e artistas no exílio e “lar da liberdade de expressão criativa”. E de acordo com uma testemunha referida pela agência Reuters, a sua anunciada presença não parece ter justificado quaisquer medidas de segurança visíveis, com os funcionários a verificarem simplesmente os bilhetes de quem ia chegando.
“Achei que tínhamos de ter ali mais segurança”, confirmou um activista argelino de defesa dos direitos humanos, Anour Rahmani, que também estava na audiência. “É um escritor com uma fatwa decretada contra ele”, argumentou.
Ainda segundo a Reuters, a instituição recusou-se a comentar a alegada falta de medidas de segurança.
Uma figura mundial
Nascido em Bombaim, no seio de uma família indiana de cultura muçulmana, em Junho de 1947, nos últimos dias da presença inglesa na Índia, Salman Rushdie viajou para o Reino Unido para estudar na Rugby School, e depois na Universidade de Cambridge, onde o seu pai se formara em advocacia. Após obter a licenciatura em História, em 1968, e antes de se radicar definitivamente em Inglaterra, ainda viveu brevemente no Paquistão, para onde a família se tinha mudado após a criação do país. Vive desde o ano 2000 nos Estados Unidos, que lhe concederam a cidadania em 2016.
Autor de uma dúzia de romances, de Grimus (1975) ao recente Quichotte (2019) – inspirado no clássico de Cervantes e protagonizado por um autor falhado de romances de espionagem –, Rushdie alcançou uma considerável notoriedade logo com o seu segundo livro, Os Filhos da Meia-Noite, que venceu o Booker Prize e que é protagonizado por uma criança dotada de poderes sobrenaturais, que nasce à meia-noite no preciso instante em que a Índia conquista a sua independência e que mantém uma ligação espiritual a crianças vindas ao mundo noutros momentos de mudança na história do subcontinente indiano.
Publicou depois Vergonha (1983), centrado no Paquistão, que também foi finalista do Booker, e O Sorriso do Jaguar (1987), mistura de livro de viagens e ensaio político sobre a Nicarágua sandinista, antes de se tornar, com Os Versículos Satânicos (1988) e com a consequente sentença de morte decretada por Khomeini, não apenas o escritor conhecido e respeitado que já era, mas uma figura mundial.
Se desde o final dos anos 1990, quando o governo iraniano se demarcou da fatwa, Rushdie foi emergindo da clandestinidade e participando em sessões públicas, o escritor não mais voltaria a levar uma vida inteiramente normal, já que nunca desapareceu o risco de poder ser atacado, como o incidente desta sexta-feira demonstra.
Em Agosto de 1989, pouco depois de a condenação do líder espiritual iraniano ter sido lida na Rádio Teerão, a 14 de Fevereiro, o escritor já escapara em Londres a um atentado contra a sua vida que não chegou a acontecer, porque o homem que pretendia assassiná-lo – a acreditar na organização libanesa que reivindicou a acção – deflagrou involuntariamente a bomba, oculta num livro, que estava a preparar, matando-se a si próprio e destruindo dois pisos de um hotel em Paddington, no centro da capital britânica.
Convidado várias vezes para vir a Portugal, Salman Rushdie fez a sua última aparição em 2016, no Festival Literário Internacional de Óbidos (Folio), tendo recentemente sido anunciada a sua vinda ao Porto no próximo dia 17 de Setembro, para uma sessão na Livraria Lello moderada pela jornalista e crítica, também colaboradora do PÚBLICO, Isabel Lucas.
Notícia actualizada às 22h35 e às 00h15 com novas informações sobre a identidade do autor do ataque e o estado de saúde de Rushdie.