Orcas vs humanos: apostas?

Convém recordar que estamos no ambiente destes animais. Convenhamos que ninguém entra na savana africana de forma desprotegida. A questão que se coloca é o que deve uma embarcação fazer ao cruzar-se com uma orca.

“Era só uma questão de tempo”, dizem os velejadores que clamam por intervenção junto das autoridades, numa esperança vã de que estas possam travar milagrosamente as interacções com orcas. No dia 31 de Julho uma dessas interacções, ao largo de Sines, culminou com o afundamento de um veleiro e resgate de cinco tripulantes, felizmente sem perdas de vidas (humanas ou outras) ou ferimentos.

O Verão mete muitas pessoas e embarcações na água. E, na água, andam tubarões, monstros marinhos e... orcas, conhecidas por uns como Orcinus orca e por outros como “baleias-assassinas”. Este segundo nome, deveras impactante, ganhou força à luz das interacções recentes, mas estas linhas pretendem precisamente reequilibrar a balança e cingir-se aos factos, que são frequentemente ignorados.

Tentemos então entender que diabo se anda a passar com as orcas ibéricas, que andam danadas para mandar cabeçadas nos veleiros. A primeira questão que normalmente se coloca é: “Mas porque é que fazem aquilo?” e, lamento desapontar, mas a resposta é “ninguém sabe.” Naturalmente que há várias teorias, que oscilam entre “estão só a brincar”, “umas estão a imitar o comportamento de outras” ou, a mais dramática de todas, “aprenderam a odiar os seres humanos”. Mas, repito, a verdade é que ninguém faz ideia porque é que fazem o que fazem.

A questão seguinte que normalmente se coloca é: “E que devemos fazer?” Esta questão já oferece algumas respostas, embora não sejam consensuais, consoante o grupo a quem a colocamos.

João Ferrand, um velejador, refere que os velejadores respondem dando à ré, numa tentativa de dissuadir os animais, e imploram para que os mesmos sejam marcados, de forma que a sua posição seja identificada e devidamente evitada. A ideia parece boa, mas não está isenta de riscos nem problemas.

O comandante Nuno Leitão, director do Aquário Vasco da Gama, assegura que actualmente a nível internacional, e talvez a nível nacional, já existe essa capacidade tecnológica, através de marcações com localizadores para monitorizar os movimentos das orcas.

Rui Prieto, investigador do Instituto Okeanos da Universidade dos Açores, que tem utilizado vários equipamentos de telemetria no âmbito da investigação da ecologia de grandes baleias, explica que a eficácia destes equipamentos é limitada para monitorização em tempo real, devido à limitação de bateria e à própria ecologia e fisiologia destes animais, que leva à rejeição ou remoção dos equipamentos durante interacções sociais. Os equipamentos raramente transmitem por mais do que alguns meses e, na pior das hipóteses, podem deixar de funcionar em poucos dias, sendo, portanto, pouco indicados como solução para este problema.

Paralelamente, a disponibilização das posições dos animais auxilia os navegadores conscienciosos, mas também fornece os meios necessários aos que andam de caçadeira e em busca de alguma criatura em quem descarregar as suas frustrações pessoais.

Veja-se o fim deste animal na fotografia, relatado pelo Grupo de Trabalho Orca Atlântica (GTOA), e as redes sociais oferecem múltiplas ameaças desta natureza.

Adicionalmente, o processo de marcação é invasivo e não isento de riscos de saúde, ferimentos, infecções e afins. Imaginemos o terrível cenário em que a marcação de um indivíduo provoca a sua morte. Queremos correr esse risco?

Agora olhemos para o historial destes eventos, que começaram há aproximadamente dois anos. O grupo de orcas “infractoras” está bem identificado pelo GTOA, que inclui múltiplos indivíduos e instituições de mérito reconhecido, incluindo representantes portuguesas e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). De acordo com Marina Sequeira, representante do ICNF no grupo, as interacções começaram em 2020 com três indivíduos, bem identificados. Aliás, todo este grupo de orcas está perfeitamente identificado e conhece-se, até, o grau de parentesco entre todos. As interacções de 2021, contudo, começaram a incluir outros indivíduos do grupo, motivo pelo qual o seu número disparou e chegou praticamente às duas centenas.

Foto
Interacções de orcas com barcos em 2021 Grupo de Trabalho Orca Atlântica

Entretanto este grupo de investigadores e peritos enumera no seu website uma lista de recomendações a seguir em caso de interacção e estas incluem passos como (entre outros):

  1. Se o mar e localização o permitirem, imobilizar a embarcação (baixar as velas), desligar o piloto automático e deixar o leme solto;
  2. Contactar as autoridades (112 por telefone ou canal 16 em VHF);
  3. Não tocar no leme e manter-se afastado de partes da embarcação que possam cair ou rodar subitamente;
  4. Se possível, desligar o sonar, manter o VHF e instrumentos de posição ligados.

Paralelamente, Sofia Silva e Alfredo Rodrigues, coordenadores científicos da Sea Shepherd Portugal, chamam a atenção para o facto de esta ser uma subpopulação muito ameaçada, com poucas dezenas de indivíduos, e que está na sua própria casa. Tratando-se de indivíduos que necessitam de protecção, este grupo advoga que a informação recolhida pelo GTOA deve ser usada em prol do bem comum, interditando temporariamente a navegação dos veleiros – o seu alvo principal – nas zonas de maior risco.

Marina Sequeira (ICNF) recorda que foi precisamente essa medida que se tomou em 2021, em duas áreas espanholas (zonas de Gibraltar e na Galiza). No caso da costa portuguesa, em 2021 foi recomendado às empresas marítimo-turísticas que não se aproximassem das orcas. A lógica é, quando há buracos na estrada, a circulação é interdita para nossa segurança (e da nossa carteira) ou, quando há um perigo à navegação num canal, proíbe-se a navegação nesse canal. A Sea Shepherd defende, por isso, um reforço da actuação das autoridades neste sentido, com consequências claras para quem faça/tente fazer mal a estes animais, nomeadamente a apreensão de licenças de navegação.

Em suma, é um tópico que tem despertado uma discussão apaixonada/apaixonante, com opiniões variadas de todos os quadrantes. Até à data, a regra dominante tem sido evitar o contacto a todo o custo e, se ocorrer, ficar sossegado/parado, de forma a minimizar os danos para todos, pessoas e animais.

Pessoalmente, parece-me que o futuro deverá incluir um mecanismo dissuasor que, baseando-se na capacidade de ecolocação dos animais (sonar), emite uma frequência que os afaste. Admito que já estava a esfregar as mãos ao aperceber-me da tremenda oportunidade de negócio, mas um breve contacto com o meu amigo investigador Nuno Queiroz, da ElectricBlue, revelou que esses mecanismos já existem. Chamam-se “oikomi pipes” e foram desenvolvidos pelo departamento norte-americano dedicado aos oceanos e atmosfera, a NOAA, curiosamente para manter as orcas afastadas dos locais afectados por derrames de petróleo, como também é referido Paulo Pernão, velejador.

A NOAA recomenda igualmente a utilização de petardos, ou pequenos explosivos, que, no passado, foram usados para capturar estes animais e colocá-los em cativeiro. A sua captura é uma prática actualmente proibida. O mesmo artigo recomenda ainda a utilização de helicópteros, mas se voarem bastante baixo e em direcção aos animais constituem um factor de perturbação altamente dissuasor. Esta técnica, contudo, além de ser dispendiosa, não é fácil nem rapidamente aplicável de um momento para outro.

Paulo Pernão acrescenta que o uso de pingers ainda não está largamente difundido. Estes são dispositivos electrónicos que emitem sons em determinadas frequências, esperando-se que algumas afastem os possantes animais. Um velejador da Galiza inventou até um petardo desenhado especificamente com o objectivo de afastar orcas, mas a sua utilização também não está generalizada.

Contudo, Marina Sequeira adverte para vários factos importantes na utilização destes mecanismos. Em primeiro lugar, recordemos que a orca é uma espécie protegida e, no caso particular da subpopulação de Gibraltar, tem um estatuto de ameaça. Qualquer acção que provoque perturbação, ferimento ou morte nestes animais é totalmente proibida. Esclarece adicionalmente que a introdução de qualquer perturbação e/ou acções que possam ter impactos negativos sobre espécies protegidas não pode ser considerada como funcionando “em defesa dos animais”, sobretudo num contexto em que somos nós os invasores do seu meio. A mesma especialista recorda que os pingers disponíveis actualmente no mercado não são indicados para orcas, não produzindo qualquer efeito nestes animais.

Além disso, a utilização indiscriminada deste equipamento tem consequências negativas para espécies que utilizam o som para se orientarem, alimentarem e comunicarem, aumentando ainda mais a quantidade de ruído já existente no mar. Por todos estes motivos, não é previsível que qualquer uma destas soluções venha a ser autorizada pelas autoridades de Espanha e/ou Portugal.

Como notas finais, convém recordar que estamos no ambiente destes animais. Convenhamos que ninguém entra na savana africana de forma desprotegida, ou nos territórios dos ursos grizzly (cujo nome científico – Ursus horribilis – diz tudo), ou vai nadar nas ilhas Farallon californianas entre os leões-marinhos (prato principal dos tubarões-brancos – Carcharodon carcharias – locais) de forma incauta. Seria insensato considerar que se pode penetrar nos domínios de predadores de cinco a seis toneladas, dentes aguçados e cérebros intensamente articulados sem pagar um preço.

Resta-nos esperar que a ciência e tecnologia – temperadas com doses generosas de bom senso – venham mais uma vez em nosso auxílio e que este duelo não se encerre de forma catastrófica como, normalmente, terminam as contendas com todas as espécies que se atrevem a fazer braços-de-ferro com os Homo sapiens sapiens.

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