Sair à rua em Portugal e não ouvir os sotaques brasileiros tem-se tornado cada vez mais raro. Quando não escuto brasileiros conversando, escuto Caetano e Silva em cafés tradicionalmente portugueses, escuto Anitta nas rádios e discotecas, Ivete Sangalo e maracatu no Carnaval, existem encontros nas principais cidades do país para dançar forró e, noutro dia, fui assistir a um espectáculo de uma amiga portuguesa e dançaram o nosso samba e, pasmem, dançaram até CPM 22. Também estamos cada vez mais presentes na culinária: tapioca, pão de queijo, feijoada, farofa, e, claro, brigadeiro. Sem falar da nossa caipirinha, mundialmente conhecida e que também está presente nos bares por aqui.
Os nossos artigos e livros brasileiros, ou que foram traduzidos para o português do Brasil, estão nas listas de indicações de professores nas universidades e estão à venda nas livrarias. Os nossos filmes, novelas, séries e, actualmente, os vídeos de youtubers e tiktokers (para o desespero de alguns pais portugueses) também têm bastante audiência. Movimentos em defesa dos nossos direitos, associações criadas por brasileiros, trabalhos académicos e livros focados nas experiências de brasileiros em Portugal também têm aumentado. No último relatório do Observatório das Migrações, relativo ao ano de 2020, havia 183.993 brasileiros residentes em Portugal e, no mês passado, recebemos quase 3 mil brasileiros por dia.
Com o aumento da presença brasileira por aqui, tenho visto também cada vez mais pessoas a dizer que estamos invadindo Portugal ou a falar em colonização reversa, mas romantizar e diminuir o que foi a colonização não é uma novidade. Aprendemos na escola que foi Portugal que “descobriu” o Brasil, que a miscigenação brasileira se deu de forma totalmente pacífica e não através de violações de mulheres indígenas e africanas e que os portugueses são colonizadores enquanto os africanos são escravos. O poder das palavras ainda é subestimado por muitos de nós, mas, historicamente, as palavras têm sido uma estratégia bastante eficaz para normalizar estereótipos e discursos de ódio destinados a determinados grupos de pessoas, e também para banalizar processos de exploração que foram projectos de Estado.
Quando as pessoas falam em invasão, esquecem que para conseguir “invadir” Portugal, os brasileiros precisam de um passaporte válido, de uma passagem aérea. Precisamos de ter uma justificação para estar cá e precisamos de ser aprovados por oficiais da imigração, muito bem-dispostos. Para invadir o Brasil, os “descobridores” portugueses basicamente só precisaram de desembarcar das caravelas e decidir que aquela terra, tudo que lá estava e todos que lá viviam, dali em diante, seriam deles. Não houve documentos, não houve controlo do número de pessoas que chegavam e do que iriam lá fazer. Não houve contribuição para a economia e, muito menos, foram deportados e mandados “de volta para a tua terra” só porque os indígenas acordaram com o pé esquerdo.
E como falar em colonização reversa quando o Brasil foi saqueado e sofreu genocídio durante mais de 300 anos para manter a metrópole e, actualmente, ainda somos nós que pagamos para fugir da violência de lá (uma das nossas heranças históricas, vale lembrar) para vir para cá deixar o nosso dinheiro com os hotéis, restaurantes e passeios turísticos; com as universidades, pagando propinas mais caras que os portugueses; ou com a Segurança Social, contribuindo com mais do que nos beneficiamos? Tudo isso para ainda ter que ouvir que Portugal não é nosso e que não somos bem-vindos aqui.
Falar em invasão e colonização reversa serve para criar um imaginário social onde nós somos uma ameaça aos portugueses, e não é disso que precisamos. Enquanto alguns, que se dizem nacionalistas, vão tentando apagar a realidade de que Portugal só nos recebe porque precisa de imigrantes para sobreviver e vão criando um delírio racista onde Portugal é uma grande metrópole, superior às “suas colónias” e auto-suficiente (Alô, Salazar!), tudo isso para ganhar mais popularidade e cadeiras no Parlamento, nós, imigrantes, seguimos aqui contribuindo para o país a todos os níveis.
Quando um português nos diz para “voltar para nossa terra”, esquece que se abandonarmos este barco, ele afunda. Esquece que nós até podemos “voltar para a nossa terra”, e teremos milhões de brasileiros esperando de braços abertos para nos receber, mas e vocês? Se o barco afundar, será que têm para onde voltar? Será que vão poder apagar as fronteiras e gritar, com um sorriso no rosto: Hola, hermanos! Volvemos!? Eu acho que não.