Jô Soares foi um exibicionista assumido, um diplomata em pleno showbusiness
Poliglota erudito, artista que ganhou as telas, os palcos e os livros com irreverência e usou o peso como marca a seu favor. O apresentador estava internado num hospital de São Paulo. O funeral será apenas para familiares e amigos.
Jô Soares foi um artista híbrido, de talentos diversos e um exibicionista assumido. Quando criança, o humorista de 84 anos, que morreu na madrugada desta sexta-feira, em São Paulo, já chamava a atenção, com suas imitações e ousadias. Pendurava-se na cobertura do anexo do Copacabana Palace, onde morava, ameaçando saltar na piscina, só para rir com a reacção dos turistas ao sol.
A morte foi confirmada pela ex-mulher do artista, Flavia Pedras Soares. “Nos deixou no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, cercado de amor e cuidados”, disse. A causa da morte não foi adiantada.
Estudou na Suíça e nos Estados Unidos, aprendeu a falar fluentemente seis línguas, pensou em ser diplomata e acabou no mundo do espectáculo, encarnando personagens caricatos de sketches memoráveis na televisão brasileira para depois consolidar o maior programa de entrevistas do país.
José Eugênio Soares nasceu no Rio de Janeiro em 1938. Filho único de uma família rica que perdeu a fortuna de repente. O pai era operador da bolsa de valores, e a mãe, dona de casa e leitora assídua. Ela teve o filho aos 40 anos, nada comum para a época.
Um dos artistas mais conhecidos no Brasil
Na escola, Jô não era chamado de gordo apesar do tamanho. Tinha o apelido de poeta, por escrever poesias. Passou sua vida mais gordo do que magro e odiava os adjectivos gordinho ou forte, por considerá-los pejorativos. Usou o peso a seu favor, como uma marca registada do artista. Gostava de junk food, em especial sanduíches, e assumia assaltar o frigorífico de madrugada para comer feijão gelado com azeite.
Casou-se três vezes, com a actriz e poetisa Tereza Austragesilo, a actriz Silvia Bandeira e a designer gráfica Flavia Junqueira, com quem manteve uma amizade profunda após o divórcio. Teve um filho com Tereza, Rafael, autista de “alto nível” parecido com o do personagem de Dustin Hoffman em Rain Man, como Jô costumava dizer nas poucas vezes que falou do filho em público.
Jô Soares era dado a paixões: livros, filmes, teatro, motos, música (jazz e blues), quadrinhos, charuto cubano (já lançou uma marca própria de charutos), refrigerante de dieta (dizem ser o conteúdo da sua caneca), artes plásticas e futebol (apoiava o Fluminense).
Noctívago, costumava dormir tarde e acordar tarde. Morava em São Paulo, no bairro Higienópolis, num apartamento de dois andares, um para sua moradia e outro para escritório, conectados por um elevador a vácuo. Apelidou o lugar de “Espaço Cultural Jô Soares”, onde tinha uma réplica de dois metros do Super Homem, uma jukebox Wurlitzer, um piano de cauda, uma estante cheia de brinquedos e bonecos de réplicas suas que recebia dos fãs e amigos, uma parede de cartazes feitos por Ziraldo para os seus espectáculos e quadros pintados pelo próprio Jô.
Considerava-se uma pessoa mística, acreditava num outro plano de existência e era devoto de Santa Rita de Cássia. Mas não se dizia católico por não concordar com muitas posições da Igreja.
Jô Soares tinha o humor como visão de mundo. E com ele se estabeleceu como um dos artistas mais conhecidos do Brasil, todas a noites na casa das pessoas, entretendo e informando, para sempre despedir-se com o beijo do gordo.
Do comediante ao entrevistador
Jô Soares trabalhou como office boy num escritório de exportação de café e noutro de turismo onde vendia passagens aéreas. Estudou para ser diplomata, mas repensou a decisão quando escutou de Silveira Sampaio que, independentemente do que ele fizesse, ia acabar no showbusiness.
Foi o que aconteceu. Jô passou a frequentar grupos teatrais, namorando Tereza Austragésilo, até que em 1958, aos 19 anos, se estreou na televisão a convite de Adolfo Celi, no programa TV Mistério da TV Rio, ao lado de Tônia Carrero e Paulo Autran.
Depois, passou a escrever e actuar em programas da TV Continental e TV Tupi. Em 1959, estreou-se no teatro como bispo de Auto da Compadecida, de Auriano Suassuma.
A fama nacional como comediante foi conquistada em 1967, como mordomo da Família Trapo, na TV Record, programa que também ajudava a escrever.
Em 1970, foi para a TV Globo, onde actuou em programas como Faça Humor, Não Faça Guerra, que estreou nesse mesmo ano, Satiricom, de 1973, e Planeta dos Homens, de 1992, até ter o seu próprio programa, o Viva o Gordo, há 40 anos.
Jô deu vida a mais de 200 personagens, como o Capitão Gay e a cantora Norminha, utilizando expressões como “vai para casa Padilha”, “não me comprometa” e “macaco tá certo”.
Em 1987, mudou-se para a rede de televisão SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) para realizar o sonho de ter um programa de entrevistas inspirado nos talk shows americanos, o Jô Soares Onze e Meia, e manteve o programa de humor, que passou a chamar-se Veja o Gordo. Houve ressentimento na Globo com a saída do comediante, que travou uma guerra de audiências e a proibição dos anúncios do espectáculo que Jô tinha em cartaz na época, assim como de anúncios de todos os que trabalhavam no seu programa semanal.
Em 2000, voltou para a Globo com o Programa do Jô, levando os 23 personagens, incluindo a camareira e o office boy. Justificou o regresso com a vontade de usar o departamento jornalístico da Globo a favor do seu talk show.
Um artista multifacetado
Jô Soares foi escritor, jornalista, dramaturgo, director e actor de cinema e teatro, músico e artista plástico. Escreveu para a revista Manchete, para o jornal O Globo, Jornal do Brasil e foi colaborador da revista Veja durante sete anos.
Lançou cinco romances policiais, o Xangô de Baker Street, de 1995, O Homem que Matou Getúlio Vargas, de 1998, Assassinato na Academia de Letras, de 2005, e As Esganadas, de 2011, além de uma autobiografia de dois volumes, lançada há cinco anos.
Chegou a vender mais de um milhão de cópias, alcançando o topo da lista dos mais vendidos, e foi editado nos Estados Unidos e na Europa. O escritor gostava de misturar ficção com factos e fazer referências a personagens verídicos.
Jô tocava bongo, piano, piston, saxofone, trompete e violão. Compunha prefixos musicais para os seus espectáculos e já teve programas musicais em rádios.
Pintava acrílico sobre tela e chagou a fazer exposições individuais no Brasil e no exterior. Uma mostra em São Paulo, em 2004, por exemplo, contou com 54 obras. Também participou na Bienal de São Paulo, em 1967.
No teatro, contracenou com Cacilda Becker e recebeu elogios de Décio de Almeida Prado. “O seu talento é tão vasto quanto a sua circunferência”, disse o crítico. Jô ainda dirigiu autores nacionais e estrangeiros, como Shakespeare, Nelson Rodrigues, Neil Simon e Edward Albee, e integrou diversos espectáculos a solo, escritos, produzidos e interpretados por ele, como Na Mira do Gordo e Remix em Pessoa.
O funeral, em local não divulgado, será apenas para familiares e amigos.