A braços com a crise do gás, Alemanha discute se deve encerrar as últimas centrais nucleares
Com a perspectiva de subidas em flecha dos preços, e de a Rússia poder cortar todo o fornecimento de gás, alemães têm de tomar uma decisão difícil sobre o calendário de abandono da energia nuclear. E a ideia de o adiar parece estar a ganhar terreno.
A Alemanha ainda tem três centrais nucleares a funcionar, que em conjunto são responsáveis por cerca de 5% da produção de electricidade no país, embora por lei esteja obrigada a desligá-las até ao fim deste ano, para completar a saída da energia nuclear, decidida em definitivo após o acidente nuclear de Fukushima, no Japão, em 2011. Mas quando toda a Europa está a pensar em formas de poupar energia, para fazer face a um Inverno que se adivinha frio, com a possibilidade real de um corte total do fornecimento de gás russo, por causa da guerra na Ucrânia, não será legítimo prolongar a vida das centrais nucleares alemãs?
Essa é a discussão do momento em todos os meios de comunicação na Alemanha nos últimos tempos, e há sinais de que a opinião pública está a mudar, no sentido de aceitar o prolongamento. A sondagem mensal Deutschland Trend para a televisão pública ARD dava, na semana passada, resultados surpreendentes: 82% dos alemães apoiam o prolongamento da utilização das centrais nucleares por alguns meses, e metade destes até um uso mais prolongado. Só 15% querem que as três que restam sejam desligadas no fim do ano, como previsto. Até entre os apoiantes dos Verdes esta ideia tem apoio: 61% estão de acordo com o prolongamento.
A questão está a dividir o Governo de coligação: enquanto o ministro da Economia e Acção Climática, Robert Habeck – que é do partido Os Verdes –, tem sublinhado que manter as centrais nucleares a funcionar não contribuiria muito para aumentar o aprovisionamento de gás, o ministro das Finanças, Christian Lindner, dos liberais, tem feito pressão para que as centrais não sejam encerradas. “Temos de nos esforçar para evitar que a seguir à crise do gás venha uma crise de electricidade”, disse Lindner numa entrevista ao jornal popular Bild am Sonntag.
“Há muitas coisas a favor de não desligar as centrais nucleares, que não agridem o clima, e se necessário utilizá-las até 2024”, afirmou Lindner. O ministro das Finanças liberal apela ainda ao seu colega de Governo, Robert Habeck, que tem a pasta da Energia, para que não utilize gás para produzir electricidade, poupando-o para o aquecimento.
Tudo isto se passa num cenário em que os preços do gás para o consumidor vão disparar, por causa de uma taxa que será aplicada a partir de 1 de Outubro, para que os custos com o aumento do preço do gás e a substituição do gás importado da Rússia sejam partilhados pelos consumidores e não só pelos importadores. As contas com o aquecimento a gás podem triplicar, alertou o presidente do instituto de investigação económica DIW.
Mas faria assim tanta diferença prolongar a vida das três centrais nucleares que restam à Alemanha? “Não mudaria o jogo, mas podia ajudar a poupar gás”, comentou Hanns Koenig, da consultora especializada em energia Aurora Energy Research, à newsletter The Hundred, do analista Marcel Dirsus, do Instituto de Políticas de Segurança da Universidade de Kiel, no Norte da Alemanha. “Atrasar o encerramento dos reactores alemães pelo menos até ao fim do próximo Inverno poderia contribuir para relaxar a situação nos mercados energéticos e do gás”, concluiu.
Habeck tem sublinhado que a crise actual tem que ver com o gás, que é usado no aquecimento das habitações e em alguns processos industriais, e não com a produção de electricidade e que, por isso, manter os rectores das centrais de Emsland (Baixa Saxónia), Neckarwestheim 2 (Baden-Württtemberg) e Isar 2 (Baviera) a funcionar para lá de 31 de Dezembro não iria alterar grande coisa. “Temos um problema de aquecimento ou de indústria, mas não um problema de electricidade – pelo menos não em termos gerais no país”, disse Habeck no início de Julho.
Uma poupança de 4%
O argumento do ministro de Os Verdes é reconhecido como válido por muitos especialistas. As três centrais nucleares que ainda estão a funcionar têm uma capacidade total de produção de energia eléctrica de 4,5 GW (gigawatts), disse Lion Hirth, professor de governação da Escola Hertie, numa série de mensagens no Twitter em que apresentou várias contas.
“Se as mantivermos a funcionar, por vezes poderão substituir centrais eléctricas a gás. Vamos ser muito optimistas: se isso acontecer em 50% de todas as horas do ano e assumirmos que as centrais nucleares estão 100% disponíveis, podemos poupar 30 a 40 terawatts/hora de gás por ano [um gigawatt são mil milhões, e um terawatt milhões de milhões, ou biliões, em português]. Mas o consumo de gás na Alemanha é de 1000 terawatts/hora. Por isso, na melhor das hipóteses, pouparíamos 4%. É melhor do que nada, mas é evidente que não altera a situação”, afirmou Lion Hirth.
“É que 45% do gás na Alemanha é usado para aquecimento, 35% como fonte de energia e na indústria, e só 15% para a geração de energia”, explica Lion Hirth.
No entanto, apesar destas contas, Lion Hirth defende que as três centrais nucleares sejam mantidas a funcionar. “Precisamos de cada terawatt/hora de gás que consigamos encontrar, e devemos usar o nuclear tanto quanto possível. Mas as pessoas estão a exagerar no potencial das centrais”, diz o especialista em governação e política energética sobre o actual debate na Alemanha.
Gás e nuclear na mesma equação
“O debate ainda continua entre os especialistas em energia. No entanto, a ideia de que este é exclusivamente um problema com o gás e uma crise iminente de aquecimento que não tem nada que ver com a geração de electricidade através da energia nuclear parece ser, no mínimo, de vistas curtas”, disse ao PÚBLICO, por email, Kevin Oswald, consultor para energia e recursos naturais da Fundação Konrad Adenauer, uma instituição próxima da CDU (centro-direita), que está na oposição.
“Primeiro, a Alemanha continua a queimar gás, que está a atingir níveis críticos, para a produção de energia, e pelo menos parte desse gás poderia ser substituído pela energia nuclear”, afirma Oswald.
Em segundo lugar, sublinha Oswald, não só as centrais a carvão que vão ser de novo ligadas à rede para compensar os cortes no fornecimento de gás pela Rússia “emitem grandes quantidades de dióxido de carbono, como há o risco de não poderem receber carvão suficiente”. Isto pode acontecer devido ao caudal baixo do rio Reno, uma importante via para transportar cargas industriais e também para levar cargas de carvão para as centrais. “A Uniper [uma grande empresa de energia alemã, importadora de gás russo, que foi resgatada pelo Estado alemão] acaba de anunciar que pode haver irregularidades na operação da central Staudinger 5 [a carvão], no Hesse, até ao início de Setembro”, exemplifica.
Por último, a possibilidade de os cidadãos comprarem em massa aquecedores termoventiladores para aquecer as suas casas no Inverno, para compensar a falta de gás, é preocupante. “Mesmo que só 10% das 20 milhões de famílias que têm um sistema de aquecimento a gás decidirem usar termoventiladores como uma opção de reforço, ou para evitar pagar os elevados preços do gás, isto pode ser um risco muito concreto para as redes eléctricas locais, em especial no Sul da Alemanha, onde a energia eólica está menos desenvolvida”, diz o especialista da Fundação Konrad Adenauer.
“Por tudo isto, não pode haver dúvidas de que a actual crise (do preço) do gás pode levar a uma crise de electricidade, dependendo de muitas variáveis”, conclui Kevin Oswald.
A CDU-CSU (centro-direita) tem defendido aguerridamente que as centrais nucleares devem ser mantidas. E acusam Os Verdes – e os sociais-democratas do SPD, o maior partido da coligação no Governo – de inflexibilidade ideológica na abordagem desta questão. Afinal, a rejeição do nuclear está no ADN de Os Verdes, cujas raízes remontam ao movimento antinuclear dos anos 1970.
“Não se trata de pôr em causa a decisão fundamental”, o abandono do nuclear, disse Andreas Jung, porta-voz do grupo parlamentar da CDU/CSU para o clima. Afinal, foi um Governo liderado por Angela Merkel, da CDU, que decidiu o abandono do nuclear. “Mas queremos mesmo fechar as três centrais nucleares que ainda existem no Inverno, quando o Governo teme uma emergência energética?”, interrogou Jung, em declarações à rádio Deutschlandfunk.
“Os Verdes preferem usar as centrais a carvão que têm emissões danosas para o clima… São um partido antinuclear”, acusou o secretário-geral da CDU Mario Czaja.
“Tendo em vista o sistema energético europeu interligado e a questão da solidariedade europeia, é questionável que o Governo alemão peça aos seus parceiros apoio no caso de ter falta de gás, quando especialmente o partido Os Verdes – em parte devido a intransigência ideológica – afasta a opção de prolongar o funcionamento das centrais nucleares”, frisa Kevin Oswald.
Scholz deixa porta aberta
Mas a verdade é que o Governo alemão não está a rejeitar liminarmente a possibilidade de prolongar a vida das centrais, embora tenha sido dito que será difícil arranjar mais combustível para as manter a funcionar, com tão pouco tempo de avanço.
O chanceler alemão Olaf Scholz (social-democrata) reconheceu na última semana que “pode fazer sentido” prolongar o funcionamento das últimas centrais nucleares, embora representem apenas uma “proporção reduzida” da capacidade total de produção de energia eléctrica da Alemanha, citou-o o Financial Times. Em especial na Baviera, que investiu pouco na produção de energia eólica.
Mas, basicamente, Scholz repetiu aquela que tem sido a posição do Governo: só será tomada uma decisão depois de estar pronto o “teste de stress” à segurança do sistema eléctrico alemão.
“Embora as divisões na coligação governamental entre liberais e Verdes sejam óbvias, o resultado do teste de stress que está a ser conduzido pelo Ministério da Economia – cujo anúncio está previsto para meados ou fim de Agosto – vai ter um papel importante e servir como justificação para não ter outra opção para além de prolongar a vida das três centrais nucleares”, diz Kevin Oswald. “Também há outro cenário plausível, que é o de o chanceler Scholz usar a chamada ‘Richtlinienkompetenz’, ou seja, a sua autoridade para estabelecer as orientações políticas e ter poder de decisão final”, sugere.
Este teste de stress está a levar em conta cenários em que as fontes de energia serão mais reduzidas do que um outro teste, feito em Maio. Desde então, a Rússia reduziu o fornecimento de gás natural à Alemanha através do gasoduto Nord Stream 1 a 20% da capacidade, alegando motivos técnicos que Berlim diz não se justificarem. Sem que a tensão da Rússia com o Ocidente por causa da guerra na Ucrânia dê sinais de abrandar, há a preocupação de que Moscovo decida fechar completamente a torneira à Alemanha, como já fez a outros países.
A própria União Europeia tem feito pressão para que as centrais nucleares alemãs continuem a funcionar. “É muito importante manter as três centrais nucleares alemãs em operação por mais tempo”, disse o comissário europeu do Mercado Único, Thierry Breton. O director da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, disse que alguns países poderiam adiar a saída do nuclear para lidar com a crise energética do próximo Inverno, salientou o site Euractiv.
Resistência de Os Verdes
Mas para que isso acontecesse, seria preciso avaliar a segurança dos reactores para funcionar para além do prazo previsto – o que pode ser feito com relativa rapidez, assegurou Joachim Buehler, director de uma das principais entidades de certificação industrial alemãs, a TÜV. “As centrais estão em excelentes condições técnicas”, assegurou.
Além disso, a Alemanha teria de mudar a lei que rege a saída do nuclear. E isso seria mais complicado. “Não vamos tocar nisso”, garantiu ao jornal Tagesspiegel o deputado Verde Jürgen Trittin. Para dar esse passo, o partido teria de aceitar a decisão em congresso, afirmou.
Trittin era ministro do Ambiente no primeiro Governo de coligação SPD/Verdes que em 2000 deu os primeiros passos para a saída do nuclear, limitando a utilização das centrais nucleares alemãs a 32 anos – o que significaria que a última encerraria em 2022. Em 2010, um novo Governo, com Angela Merkel na liderança, mudou a lei e prolongou o tempo de vida útil das centrais em 14 anos – mas em 2011 aconteceu o acidente de Fukushima, e os planos para a saída do nuclear em 2022 foram retomados.
Alguns políticos de Os Verdes têm demonstrado uma certa abertura para que alguns reactores possam continuar a funcionar, durante um período curto, com o combustível que têm disponível – funcionando a uma intensidade mais baixa. Mas a maior parte dos dirigentes de Os Verdes desconfia da ideia, como Trittin. “A energia nuclear não é a solução fácil, é uma solução falsa e altamente perigosa, mesmo a curto prazo”, disse Julia Willie Hamburg, candidata deste partido a chefe de governo do estado federado da Baixa Saxónia, citada pela revista Politico.
Aceitar que as centrais nucleares continuem a funcionar para além do tempo previsto seria um passo enorme para Os Verdes alemães. “Robert Habeck já está a pedir muito ao seu partido, ao dar um prazo mais longo para abandonar as centrais a carvão, e ao aceitar o gás de xisto”, comentou à agência Reuters Timon Gremmels, coordenador da política de energia do SPD, referindo-se ao gás natural liquefeito oriundo do gás de xisto, como o norte-americano, que é entregue à Europa sob a forma de gás natural liquefeito e transportado em grandes navios. A Alemanha está a construir quatro terminais para receber esses navios. “Se Robert Habeck também trouxer para a liça a energia nuclear, a paciência de Os Verdes vai-se esgotar”, disse o dirigente político.