Nancy Pelosi aterra em Taiwan e irrita a China
Presidente da Câmara dos Representantes visita a ilha para mostrar “compromisso inabalável” dos Estados Unidos à “democracia vibrante” de Taiwan. China responde com o anúncio de exercícios militares em redor da ilha.
Depois de horas de expectativa, em que milhares de pessoas em todo o mundo estiveram a seguir o bonequinho de um avião nos sites que monitorizam o tráfego aéreo global, a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, aterrou em Taipé, capital de Taiwan, por volta das 23h locais (16h em Lisboa).
Esta é a primeira visita à ilha de um elemento de topo da política norte-americana desde 1997, quando Newt Gringrich, o então presidente da Câmara dos Representantes, ali esteve. Não constava do programa oficial do périplo que a speaker democrata está a fazer pelo continente asiático e foi uma incógnita até ao momento em que a própria desceu as escadas do avião militar que a transportou de Kuala Lumpur. À sua espera na pista estava o ministro dos Negócios Estrangeiros de Taiwan, Joseph Wu.
“Não havia nenhum cenário possível em que o Governo de Xi Jinping encararia esta visita com descontracção”, defende Filipa Rodrigues Teodoro, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais.
Joana Gonçalves“A visita da nossa delegação honra o compromisso inabalável da América para com a democracia vibrante de Taiwan”, declarou Pelosi num comunicado dado a conhecer mal pisou a pista do aeroporto de Taipé. “A solidariedade americana com as 23 milhões de pessoas de Taiwan é hoje mais importante do que nunca, num momento em que o mundo enfrenta uma escolha entre autocracia e democracia”, acrescentou.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês também reagiu imediatamente com um longo comunicado. “Esta é uma violação grave do princípio ‘uma só China’”, declarou o Governo de Pequim, acrescentando que a visita “tem um forte impacto nas fundações da relação entre China e Estados Unidos” e “envia um sinal muito errado às forças separatistas” de Taiwan.
A presença de Pelosi na ilha cuja soberania é reivindicada pela República Popular da China tinha motivado várias ameaças do Governo chinês e a realização de manobras militares da aviação chinesa no Estreito de Taiwan. Também os Estados Unidos mobilizaram as suas forças para a região – segundo a Reuters, quatro navios de guerra, incluindo o porta-aviões USS Ronald Reagan, viajaram através do Mar do Sul da China e estão estacionados a Leste de Taiwan.
O Governo chinês afirmou mais do que uma vez que os EUA estão a “brincar com o fogo”, garantiu que o Exército de Libertação Popular vai reagir e acusou o país de “interferência nos assuntos internos da China”. Xi Jinping disse directamente a Joe Biden, numa chamada telefónica que ambos tiveram na semana passada, que “quem brinca com o fogo queima-se”.
Governada de forma autónoma desde 1949, quando o Governo nacionalista de Chiang Kai-shek chegou à ilha, fugindo das forças comunistas de Mao Tsetung, Taiwan foi reconhecida durante vários anos pelos Estados Unidos e seus aliados como legítima representante do poder político chinês.
O reatar das relações diplomáticas oficiais com Pequim, em 1979, levou, no entanto, os norte-americanos a reconhecerem a República Popular da China, em detrimento da República da China (Taiwan), e a assumirem como política oficial o respeito pelo princípio “uma só China”, segundo o qual o território soberano chinês é uno e indivisível e Taiwan é uma província chinesa “temporariamente ocupada”. Apesar de não ter relações diplomáticas oficiais com Taipé, Washington está obrigada, por lei, a fornecer meios ao território para que se possa defender militarmente.
Para o Governo chinês, a visita de Nancy Pelosi viola o acordo entre os dois países em 1979 e é uma “grave provocação política”. O comunicado do ministério de Wang Yi repete que “brincar com o fogo” é “extremamente perigoso” e que “aqueles que brincam com o fogo morrerão pelo fogo”. Em contraponto, o comunicado da speaker norte-americana diz que a visita “de maneira nenhuma contradiz” a política dos EUA sobre Taiwan das últimas décadas nem os anteriores entendimentos entre Washington e Pequim.
Exercícios militares chineses
Antes de aterrar em Taiwan, Pelosi visitou Singapura e Malásia e ainda tem na agenda oficial passagens pela Coreia do Sul e pelo Japão. O avião da Força Aérea americana que a transportou no périplo asiático levantou voo de Kuala Lumpur depois das 15h locais (7h em Lisboa) e contornou o Mar do Sul da China, passando pelos espaços aéreos da Indonésia e das Filipinas. Mais de 700 mil pessoas acompanharam o trajecto em directo no FlightRadar24, que monitoriza o tráfego aéreo, fazendo deste o voo mais seguido de sempre daquela plataforma.
No aeroporto de Taipé estavam centenas de pessoas, incluindo muitos jornalistas, à espera da aterragem. O Taipei 101, o maior arranha-céus da ilha, começou a exibir mensagens como “Taiwan ❤️ Estados Unidos” e “Bem-vinda a Taiwan”. Mas houve também quem se manifestasse contra a visita, alegando que a chegada de Pelosi iria desestabilizar e piorar as relações da ilha com a China continental.
O Ministério da Defesa chinês anunciou entretanto que o Exército de Libertação Popular “vai realizar importantes exercícios militares, incluindo acções com fogo real” em seis zonas marítimas e aéreas em redor de Taiwan, entre quinta-feira e sábado.
Na quarta-feira de manhã, madrugada em Portugal, Nancy Pelosi vai encontrar-se com a Presidente Tsai Ing-Wen e depois de almoço deverá partir para a Coreia do Sul, penúltima paragem do périplo que iniciou no domingo.
Casa Branca pede calma, Rússia alinha com Pequim
Antes mesmo da aterragem, a Casa Branca procurou desvalorizar a visita à ilha. “Não há qualquer motivo para que Pequim transforme uma potencial visita, que é coerente com a política americana desde há muito, numa crise ou num conflito, ou para que a use como pretexto para aumentar a actividade militar agressiva no estreito”, disse à CNN o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby.
Há duas semanas, quando a ida de Pelosi a Taipé não passava de suposição nos media americanos, Joe Biden mostrou-se incomodado com a deslocação. “Os militares pensam que não é uma boa ideia neste momento”, disse o Presidente americano, que não pediu explicitamente à speaker que não fizesse a viagem para que internamente não fosse acusado de violar a independência do Congresso e dos seus representantes.
Esse tem sido, aliás, o argumento usado para justificar a visita. Biden terá dito a Xi, na chamada telefónica da semana passada, que Pelosi tinha total liberdade para decidir que viagens faz, e o secretário de Estado Antony Blinken repetiu o mesmo na ONU, na segunda-feira: “A decisão é inteiramente dela.”
Num contexto de guerra na Ucrânia, em que os Estados Unidos procuram isolar internacionalmente a Rússia, de Moscovo saíram palavras de alinhamento com Pequim, com quem Vladimir Putin tem uma parceria “sem limites”. “Tudo o que está relacionado com esta viagem, incluindo a possível visita a Taiwan, tem obviamente um carácter provocatório”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, para quem “infelizmente, os Estados Unidos escolheram o caminho da confrontação”.
A declaração de apoio à China foi mais tarde confirmada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, que em comunicado disse que o país “tem todo o direito a tomar medidas para proteger a sua soberania”.