Olhão e Culatra, “lá pró pé do fim”
A leitora Fernanda Gamito foi atrás de uma música de Júlio Pereira e assim conheceu uma das ilhas-barreira da ria Formosa.
“Ilha da Culatra, lá pró pé do fim/ mora um pescador e nasceu outro assim/ E no meio do mar, a Zé cantava assim/ Ilha da Culatra vai ter outro fim.” (Mãos de Fada LP 1979)
Atrás de uma música com mais de 40 anos, fomos ver a ilha da Culatra. Talvez o “fim” a que se referia o Júlio Pereira não fosse esse, mas, ao olhar o mapa em papel, fez-se luz: as ilhas-barreira da ria Formosa são mesmo o ponto mais abaixo neste rectângulo, o “fim” a sul do nosso pequeno país e das primeiras a desaparecer se, um dia, o nível do mar subir mesmo.
No pino do Verão, os ferries para as ilhas vão lotados. Pela hora do almoço, a fila engrossa e a pequena multidão começa a agitar-se com a demora, olhos pregados no horizonte, à procura do barco que não chega. Por fim, lá vem a explicação, em algarvio cantado: “Na hora do almoço só anda um barco. Há pouca tripulação; os outros ‘forem’ almoçar.” Efectivamente, lá atrás, já tinha ficado o aviso, pendurado na vitrine da bilheteira: “Precisa-se de mestres de embarcação”...
Esclarecidíssimos, aguentamos a meia hora mais da volta da carreira, imaginando como se apresentará a ilha, trauteando mentalmente: “Meia hora leva o barco e o vento a soprar/ muita vida leva o homem lá no meio do mar.”
À chegada, o casario baixinho, de pescadores, viveiristas e mariscadores, supostamente; depois, até onde os olhos alcançam, as dunas douradas das perpétuas-das-areias, com o seu perfume de caril que nos acompanha no passadiço (não pisar as dunas, por favor!), até se avistar o mar. Praia tranquila por onde dispersam alguns dos passageiros dos lotados ferries. No final da tarde, regressa-se a Olhão pela mesma carreira, agora no “desdobramento” da balsa.
A cidade é para ser vista de cima. Vale pelos seus telhados-terraços característicos, as açoteias, a relembrar as influências de outras terras de pescadores, noutro Sul, na costa ocidental marroquina, “mar de Larache”, onde os de cá iam à pesca “do alto”. De tão longe, não se ouve o muezim a chamar para as orações desta sexta-feira, mas, na Igreja Paroquial, parece haver um sacristão que sabe como chamar a atenção dos mais distraídos: a falta de ritmo e o número de badaladas que ecoam da torre sineira nem sempre acertam pela hora legal...
Estamos numa cidade viva, conciliada com a História e o tempo presente. Surpreendem o bulício no comércio tradicional, os falares algarvios que, pela manhã, se sobrepõem aos estrangeiros, os centenários mercados, ex-líbris de Olhão, construídos sobre estacas em terra ganha à ria, continuamente repletos de produtos locais e regionais. Aqui, dizem-nos, não há câmaras frigoríficas; o peixe há-de ser fresco, com certeza, pois não fica de um dia para o outro.
A ria continua a oferecer esta abundância, aparentemente sem fim, embora a partir dos anos 80 do século XX se tenha tornado inevitável dedicar-lhe mais atenção. Como acontece com todas as coisas belas e frágeis. É dessa época a criação do Parque Natural.
Quem quiser saber o que anda a fazer o Instituto da Conservação da Natureza e da Floresta pelo Parque Natural da Ria Formosa (além de não conseguir estancar a proliferação da cultura intensiva de abacateiros no seu território, lá para os lados de Cacela Velha), pode visitar o Centro de Educação Ambiental de Marim, em jeito de despedida de Olhão.
E já agora, ficar-se por ali perto, se for novamente hora de almoço, num restaurante simples, mas onde é difícil escolher o que provar, entre peixes com nomes até então desconhecidos e arrozes de lingueirão ou de outros bivalves. O resultado poderá ser um pequeno excesso, talvez inspirado pelo espírito do povoamento romano que há dois mil anos progredia neste lugar, no meio das salgas e alfarrobeiras. O mais certo mesmo é que esta ria tão Formosa e a vista das ilhas do “fim” nos deslumbrem o apetite.
Fernanda Gamito