Guerra na Ucrânia: artistas que vão à Festa do Avante! reagem a críticas
Pela paz, desvalorizando a polémica, com a consciência de que são alvos indirectos, porque o principal visado é o Partido Comunista Português, é assim que alguns dos participantes na próxima festa do Avante!, de Dino d’ Santiago a Vitorino Salomé, têm reagido a algumas solicitações de boicote, com a guerra na Ucrânia e as posições do partido no horizonte.
A semana passada, num dos canais de televisão portugueses, o jornalista e comentador José Milhazes criticou os artistas portugueses que irão actuar na Festa do Avante!, que acontecerá de 2 a 4 de Setembro na Quinta da Atalaia, no Seixal, sugerindo que os mesmos não deveriam aceitar fazer parte do cartaz em razão das posições que o PCP tem assumido relativamente à invasão da Ucrânia. “É uma festa política de um partido que apoia regimes hediondos e que, neste momento, está a apoiar uma guerra”, sentenciou na altura.
As redes sociais apressaram-se a reagir e esgrimiram-se argumentos à volta das posições do PCP nos últimos meses. Uns enaltecendo a intervenção de Milhazes, lembrando que o PCP foi o único partido com assento parlamentar que não condenou a invasão militar da Ucrânia, outros criticando-a, lembrando que o enquadramento do conflito feito pelo partido tem em atenção um contexto mais global que não deve ser confundido com um apoio ao regime russo, para além de assegurarem que se a Festa do Avante! tem uma componente política, é também um acontecimento cultural e musical, por onde ao longo dos anos passaram quase todos os nomes sonantes das músicas feitas em Portugal.
De seguida, alguns cronistas vieram dar as suas opiniões diversas sobre o assunto, nomeadamente no PÚBLICO. Nos últimos dias coube também aos artistas visados reagirem. O PCP, questionado pelo PÚBLICO, não quis comentar a polémica, dizendo apenas, através do gabinete de imprensa, que “o programa político-cultural da Festa do Avante! tem inegável valor e é conhecido. As expectativas de participação são positivas.”
A programação musical não está fechada – ainda esta quarta-feira foram adicionados os Mão Morta – e o mesmo acontece com outros eventos, como os debates. Do que se conhece para já do cartaz constata-se que a maioria já ali actuou em anos anteriores (Dino D’ Santiago, Mão Morta, Scúru Fitchádu, Paulo Bragança, Fogo Fogo, Dany Silva, Marta Ren, Ricardo Ribeiro, Júlio Resende e outros), e há estreias como a fadista Carminho ou a cantora Pongo, um dos exemplos de sonoridades afro-portuguesas em destaque nos últimos meses.
De resto, trata-se de um cartaz na linha dos últimos anos, com música popular portuguesa, afro-portuguesa, fado, jazz, hip-hop ou electrónica, para além de iniciativas especiais como música clássica que está nos livros do Nobel José Saramago ou dois concertos de homenagem a Adriano Correia de Oliveira. Aquela que é uma das vozes mais ouvidas e seguidas nos últimos tempos em Portugal, a de Dino D’ Santiago, foi a primeira a reagir às críticas com uma publicação na rede social Instagram, dando a entender que terá sido alvo de insultos, para além de ter “recebido mensagens de algumas pessoas” contra a sua participação na Festa do Avante! – “Uns pedindo para que a cancele, outros responsabilizando-me pelo sangue ucraniano derramado nesta guerra.”
De seguida, escreve sobre um mundo que é incapaz de parar com as guerras: “Sim. Sou responsável pelo sangue derramado nesta e em todas as guerras, em ambos os lados da trincheira! Porque sou um filho do século XX! O século mais assassino da história da humanidade! Nas nossas mãos carregamos o sangue de mais de 100 milhões de seres humanos, mortos em nome do poder, religião ou genocídio.” Por outro lado, tece críticas a uma Europa que olha para as diversas conflitualidades do globo de forma desigual.
“Onde estão quando a fome grita por socorro às crianças no Iémen, onde estão quando o assunto são 5,5 milhões de seres refugiados da República Democrática do Congo, ou dos 1,75 milhões que fogem do Burkina Faso, somando aos outros milhões de pessoas refugiadas vindas dos Camarões, Sudão do Sul, Chade, Mali, Sudão, Nigéria, Burundi e Etiópia?”, acaba por indagar, concluindo: “Sou e serei sempre pela paz em qualquer canto do globo! E para esta guerra da humanidade carrego a única arma que herdei dos meus pais: amor! E enquanto tiver munições viajarei por todos os lugares onde sou bem-vindo.”
Estarei no Avante!
O músico Marcus Veiga, mais conhecido por Scúru Fitchádu, admite que nomes mais sonantes do que o dele, “como o Dino d’ Santiago ou a Carminho”, possam ser visados pela polémica, mas tende a desvalorizá-la. “Li a mensagem do Dino e alinho pelo seu pensamento, embora se não tivesse dito nada também não me pareceria mal, porque não tem de provar nada a ninguém.” No seu caso específico, o facto de não ser um nome de grande público acaba por resguardá-lo de polémicas. “Recebi duas ou três mensagens que ignorei por completo. Sou mais de chegar ao palco e ali dizer o que tenho para comunicar. Mas não me parece justo para os artistas estarem agora a justificar-se. Não me cabe a mim defender o PCP, mas é nítido que, nos últimos anos, como aconteceu no ano passado aquando da pandemia, esse partido é atacado para aproveitamentos políticos. Ou seja, neste caso hostiliza-se os artistas, para atingir o PCP.”
Para ele será a quarta vez no Avante!. Seja em Portugal ou no estrangeiro, onde actua com a mesma assiduidade, o que lhe interessa é “mostrar o que tenho para comunicar e as minhas posições, independentemente da plataforma. Como toda a gente sabe, a larga maioria dos artistas que vai ao Avante! não é comunista. Estarei no Avante! sem qualquer problema. Ninguém gosta de guerra, seja ela qual for, mas o eurocentrismo na avaliação dos conflitos dá que pensar. Quando a guerra é longe, assobiamos para o lado; quando é aqui ao lado, as coisas tomam grandes proporções. Temos de reflectir sobre isso.”
Quem também subvaloriza a polémica iniciada pelas afirmações de José Milhazes é Vitorino Salomé, que se apresentará na Atalaia com o cubano Emilio Moret, que integrou o famoso Septeto Habanero. “Quando aquele senhor de que não digo o nome, para a língua não se me dobrar, levantou a polémica, não lhe atribuí qualquer importância e continuo a pensar da mesma forma”, afirma, acrescentando que irá “com vontade, alegria e gosto” ao festival, “porque é uma das festas maiores e mais importantes da música portuguesa.”
Na sua visão, é uma “festa cultural e musical”, com uma “componente política” que não o incomoda, porque “não sendo militante do Partido Comunista — nem de nenhum outro —, sou de esquerda. E ainda por cima vou cantar com um cubano, e o que mais me importa são essas questões culturais e esta mistura fantástica que se faz com outros povos a cantar. Isso interessa-me mais. Deixem-nos estar descansados porque cantar é o melhor remédio para muitos males.”
Já a cantora Bia Ferreira, voz destacada da luta anti-racista e da afirmação da comunidade LGBTQI+ no Brasil, que acabou por ser visada por José Milhazes quando disse que vem “à festa de um partido que apoia regimes que perseguem, prendem e matam todas estas minorias sexuais”, também reagiu através de um vídeo, assegurando que “qualquer palco que me convide para fazer a minha arte, eu subo, porque sou uma mulher, preta e brasileira, que não tem tantas oportunidades assim para fazer a arte política e revolucionária que eu apresento”, sendo mais assertiva quando acrescenta: “Eu vou para denunciar os estragos que o povo português deixou aqui no Brasil. Se só as mortes na Ucrânia incomodam vocês, porque é um europeu branco morrendo, eu queria falar que a cada 23 minutos morre um preto aqui no Brasil. E é isso que eu vou fazer à Festa do Avante!: denunciar o estrago que ficou aqui. Eu não me nego a tocar, porque a minha arte não vai ser calada, nem denunciada”, afirmou ainda a cantora que antes da Atalaia pisará já esta quinta-feira o palco do Festival Músicas do Mundo de Sines.