Direitos Humanos de Macau reprovam nas Nações Unidas
Os princípios da separação de poderes e do Estado de direito parecem as próximas vítimas numa Região a que Portugal prometeu solenemente que seria governada pelas suas gentes, e não pela China. Macau passou o ponto de não retorno.
Um desempenho tudo menos cintilante, é que se pode dizer da prestação da delegação de Macau no Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH), que acompanha, a partir de Genebra (onde participei numa reunião privada com o CDH), a implementação, pelos seus membros, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP).
O PIDCP aplica-se a Macau praticamente nos mesmos termos que se aplica a Portugal, pelo que os direitos fundamentais deveriam ser observados lá em moldes similares ao que o são cá. O facto de Macau ter começado por assinalar o “tremendo apoio do governo chinês” – país que se especializou na violação dos direitos humanos e único membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas que não aderiu ao PIDCP – é um sinal dos tempos.
Desde 2019, Macau baniu todas as manifestações críticas da violência policial de Hong Kong e do Massacre de Tiananmen, por alegadamente violarem legislação de Hong Kong e ofenderem a China. Outras, por terem sido convocadas por não residentes (sobre um governo amigo, Myanmar). Sendo a China e Hong Kong jurisdições externas, os direitos fundamentais em Macau parecem, surpreendentemente, poder passar a ser restringidos por leis de outro país ou jurisdição.
Sobre o “direito de reunião”, Macau informou o CDH que “manifestações flagrantemente contra o governo”, que consistam em “retórica contra a Lei Básica” (constituição de Macau) ou visem “vexar autoridades”, não devem ser autorizadas, notando, a propósito da vigília sobre as vítimas do massacre de Tiananmen, que se tratava da “promoção aberta de comentários provocatórios, ofensivos, caluniosos, insultuosos e ridículos”.
Em Macau, como na Rússia, o governo, a polícia e o tribunal elevaram-se à categoria de historiadores e consideraram que o Massacre de Tiananmen não foi um massacre, passando a ser supostamente difamatório chamá-lo pelo seu “nome próprio”.
O PIDCP só permite restrições ao direito de reunião que sejam “necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança pública ou da ordem pública ou para proteger a saúde e a moral públicas ou os direitos e liberdades de outrem”.
A proibição de uma vigília em homenagem às milhares de vítimas do massacre de Tiananmen – que tiveram lugar todos os anos entre 1990 e 2018 –, tal como as restantes interdições, são uma transgressão frontal do PIDCP, que as autoridades de Macau interpretam como admitindo introduzir restrições no interesse da elite governativa ou ao serviço de uma ideologia de partido ou estado.
Numa sociedade em que o chefe do governo é imposto por Pequim, em que os deputados eleitos por sufrágio universal são menos de metade e em que os candidatos de quem o Partido Comunista Chinês não gosta são desqualificados pela Comissão Eleitoral (os quais representei em Tribunal), a liberdade de expressão e o direito de reunião constituem as únicas formas de a população fazer ouvir a sua voz.
Para o governo de Macau, direitos e liberdades existem com fartura, desde que sejam exercidos para apoiar os governos crescentemente autocráticos da China, Macau e Hong Kong. A “funcionalização” daquela norma particular não augura nada de bom, abrindo o caminho para atirar objectivamente o PIDCP e os seus direitos para o caixote do lixo do futuro de Macau.
Os representantes de Macau tropeçaram de novo na realidade ao afirmarem que o PIDCP não é directamente aplicável em Macau, ou seja, que tem de ser transposto para legislação doméstica – o que fizeram com o vago propósito de escapar à sua violação. Não repararam que se assim fosse (e não é), Macau teria violado o PIDCP ao não aprovar a dita legislação. Abriram as janelas enquanto tentavam, sem sucesso, fechar a porta…
Além disso, trata-se de uma falsidade dolorosa, que contraria a posição oficial transmitida pela própria R. P. da China às Nações Unidas em dois “Core Documents”, de 2000 e 2010.
Neles, a China afirma que os tratados internacionais “tornam-se imediata e automaticamente parte do ordenamento jurídico da RAEM” (Macau), “não havendo necessidade de incorporar o direito internacional no direito interno para a sua aplicação”, pois “um dos pilares fundamentais do ordenamento jurídico de Macau… é precisamente o facto de o direito internacional e o nacional fazerem parte da mesma ordem jurídica”. É inconcebível que a delegação de Macau desconheça, ou finja desconhecer – e logo nas Nações Unidas –, os próprios “Core Documents” da China relativamente a Macau.
A delegação conseguiu ainda a proeza de louvar as medidas draconianas e insensatas do governo de Macau de “prevenção” à pandemia, que estão a destruir a economia e as PME, bem como a massacrar a população, incluindo crianças, com testes diários, confinamentos repetidos e imprevisíveis. Estas restrições drásticas de liberdades essenciais, que tornaram a vida de Macau num inferno injustificado, pretendem abolir por arrastão um vírus que só naquele país se acredita poder ser ideologicamente evaporado. Daí o CDH ter questionado se “restrições tão severas” respeitam os princípios da necessidade e proporcionalidade do PIDCP.
Para as autoridades políticas portuguesas, que tanto insistem que a China está a cumprir a Declaração Conjunta entre Portugal e a China sobre a Questão de Macau, convém recordar que não está. As liberdades de expressão, imprensa e reunião são reiteradamente violadas. Não existe direito à greve. Os trabalhadores não residentes são discriminados e os seus direitos desprezados. O governo chinês deixou de ter qualquer preocupação em ocultar que não tem intenções de democratizar minimamente o regime de Macau. Quaisquer ilusões de democratização e de respeito por direitos e liberdades civis e políticas deixaram de nos iludir.
Os princípios da separação de poderes e do Estado de direito – que implica a subordinação do poder político ao direito e a congruência entre lei escrita e lei aplicada (em condições de igualdade) – parecem as próximas vítimas numa Região a que Portugal prometeu solenemente que seria governada pelas suas gentes, e não pela China, e com respeito pelas liberdades e direitos fundamentais. Macau passou o ponto de não retorno. O governo de Macau tornou-se um órgão municipal, tendo a governação política passado para Norte.
Os responsáveis políticos da UE e de Portugal devem registar isso como o CDH está a fazer e actuar em conformidade. Mas os governos de Portugal continuam a viver em negação, em nome de interesses que não são os das gentes de Macau que Portugal asseverou defenderia até 2049.