Uber Files: crime sem castigo?

O caso originou na opinião pública uma perceção de impunidade e de injustiça que, no atual contexto, cria condições favoráveis ao enraizamento do extremismo e da radicalização política.

A investigação dos Uber Files divulgada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação revelou como a Uber “invadiu os mercados em todo o mundo, como usou tecnologia furtiva e práticas evasivas para impedir os reguladores e a aplicação da lei em pelo menos seis países e como implantou um batalhão de lobistas para cortejar líderes mundiais para influenciar a legislação e a evitar impostos”.

A investigação cita nomes tais como Emmanuel Macron, então ministro da Economia, Neelie Kros, comissária europeia, membros seniores do staff técnico de Obama, ministros do governo inglês, etc, e baseou-se em mais de 124.000 documentos confidenciais referentes a 40 países no período-chave da expansão da Uber, os anos 2013-2017.

Os documentos foram divulgados ao jornal The Guardian pelo ex-chief lobbyist da Uber na Europa, Médio-Oriente e África, Mark MacGann, que justificou o seu ato em parte com o remorso por saber que “os executivos seniores da Uber conscientemente desprezaram as leis em dezenas de países e venderam uma mentira às pessoas acerca dos benefícios para os condutores da empresa de modelo economia GIG” (forma de trabalho baseada em pessoas que têm empregos temporários ou fazem atividades de trabalho freelancer, pagas separadamente, em vez de trabalhar para um empregador fixo, na definição do dicionário de Cambridge).

A meu ver, os Uber Files expõem violações graves a bens e interesses sociais que são a pedra de toque da vida democrática, da economia de mercado de base capitalista e do mercado único da UE, e dos quais depende a sua sustentabilidade. Não obstante, prevalece um impressivo aguamento do caso nos media portugueses ou nas lideranças políticas e empresariais que parecem dar sinais de o ignorarem ou passarem de viés. Neste pano de fundo há a notar que, de acordo com notícia do PÚBLICO, a “Uber já reagiu a esta investigação através de uma porta-voz, Jill Hazelbaker, que reconheceu que a empresa cometeu “falhas” e “erros”, mas insistiu que essas más práticas terminaram em 2017, quando Travis Kalanick foi substituído no cargo de presidente executivo por Dara Khosrowshahi. “Hoje, somos uma empresa diferente. Pedimos que nos julguem pelo que fizemos nos últimos cinco anos e pelo que faremos nos próximos anos”, disse Hazelbaker, que assumiu que a empresa “não tentará arranjar desculpas para o comportamento no passado”.

Seja-me concedido destilar em estilo tweet, o essencial da posição da Uber: o passado presente não conduz a futuro algum.

Repudio esta cultura organizacional e o modus operandi das estruturas de governação expostas pela investigação, em especial das públicas, inegavelmente desalinhadas do bem comum como fundamento e critério de decisão ou da aspiração social pela interligação entre liderança-responsabilidade-integridade. Este desalinhamento atentou contra a integridade do sistema fiscal, da sã concorrência e da dignidade laboral e das suas condições. Atentou igualmente contra a integridade e a transparência do processo político-legislativo democrático ou da aplicação da lei. Assim, originou na opinião pública uma perceção de impunidade e de injustiça que, no atual contexto, é atentatória da licença social do sistema de governo democrático e da União Europeia, criando condições favoráveis ao enraizamento do extremismo e da radicalização política.

Todas as razões que mencionei tornam imperativo uma reação firme e pronta do Estado de Direito em prova de vitalidade de que a democracia representativa não teme nada nem ninguém, e que o braço da lei chega a todo o lado não deixando crime sem castigo. No que assim trará aos cidadãos e ao mercado concorrencial, incluindo ao mercado único da UE, uma mensagem de esperança no futuro ao tornar claro que a introdução de novas tecnologias, as transições climática e digital não poderão ser realizadas através de comportamentos empresariais antissociais baseados em portas-giratórias e no “might is right”, com sacrífico da ordem pública e dos valores que sustentam o bem-estar a que como cidadãos, país e União Europeia aspiramos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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