Temperaturas acima do normal, mais seca e pouca chuva: o Verão que aí vem

Quase todo o país está em seca severa ou extrema e o cenário deverá intensificar-se nos próximos meses. O risco de incêndio também aumenta com as temperaturas elevadas e com a falta de humidade. É quase uma “tempestade perfeita”.

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Governo declarou situação de contingência de segunda a sexta-feira por causa do aumento do risco de incêndio Paulo Pimenta

Vem aí um Verão seco, com temperaturas acima do normal e com pouca chuva. É esta a previsão traçada para os próximos meses pelo chefe de divisão de clima e alterações climáticas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), Ricardo Deus. Por agora, este ano está já a ser o segundo mais seco desde 1931. Quando se fala em “ano” não falamos apenas de 2022, mas sim do “ano hidrológico”, que vai de Outubro de 2021 a Setembro de 2022.

Para a geógrafa Maria José Roxo, esta é quase uma “tempestade perfeita”: “Não temos condições naturais favoráveis, mas também estamos a gastar mais do que aquilo que devíamos”, diz, referindo-se à falta de água. “E temos de mudar este comportamento, isso é crucial para o futuro.”

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Nos meses de Agosto e Setembro, é também possível que a quantidade de precipitação fique abaixo do normal, essencialmente na região Norte e Centro, diz Ricardo Deus. “O que se espera é um Verão muito seco e com temperaturas acima do normal”, sintetiza. Ainda que seja comum haver pouca chuva nos meses de Verão, grande parte do “problema” está ligada aos baixos níveis de precipitação no Inverno. “Este ano temos uma seca porque não choveu no Inverno e devia ter chovido”, resume também Maria José Roxo, especialista em seca e desertificação.

Mais de 96% do território continental português está em seca severa (67,9%) ou seca extrema (28,4%) e só 3,7% do território está em seca moderada, de acordo com os dados do IPMA de 30 de Junho. Com o tempo esperado, “será ‘normal’ que o índice de seca possa agravar-se durante os próximos meses”, analisa Ricardo Deus. Além da seca, espera-se também que estas temperaturas elevadas causem “desconforto térmico, com impactos mais significativos na população mais vulnerável”.

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Nos meses anteriores já se registaram subidas de temperatura. O mês de Maio de 2022 foi o mais quente dos últimos 91 anos em Portugal e o mês de Junho foi “quente e seco”. A nível global, o mês de Junho de 2022 foi o terceiro Junho mais quente desde que há registos, segundo o Serviço de Alterações Climáticas do Copérnico.

Ao calor, junta-se a ausência de chuva. Segundo o IPMA, entre Outubro de 2021 e Junho de 2022 choveu só metade do que era expectável: a quantidade de precipitação acumulada foi de 416,1 milímetros, o que corresponde a 51% do “valor normal” – e faz com que este seja o segundo valor mais baixo desde 1931. “O normal seria, em média, termos registado praticamente o dobro da precipitação verificada”, explica Ricardo Deus. Por enquanto, o ano mais seco continua a ser o de 2004/2005.

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O Verão adivinha-se igualmente seco. “Sabemos pelos estudos climáticos que estes meses de Julho e Agosto são meses em que há um enorme défice de precipitação. Essa é a realidade”, sumariza a professora Maria José Roxo. Ainda assim, tal não significa que não possa haver “situações de estado de tempo que provocam chuvas muito intensas e até com queda de granizo”, como aconteceu há dias nos distritos de Viseu, Guarda, Bragança e Vila Real, por causa da “própria instabilidade da atmosfera”. Essas chuvas podem até ter um “grande poder erosivo e de destruição”.

Ondas de calor num clima diferente

O Verão começou com temperaturas mais amenas e alguma chuva, mas esta semana já se registam temperaturas acima de 30 graus Celsius em quase todo o país, ultrapassando os 40 graus em algumas regiões. “Se a onda de calor persistir durante alguns dias, é altamente provável que possa agravar a seca meteorológica”, já que aumenta os níveis de evaporação e agrava a secura dos solos, explica Ricardo Deus.

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Foz de Alge Miguel Manso

A realidade é que os solos e as culturas já têm muito pouca humidade e agora “haverá maiores níveis de evaporação, o que vai fazer com que a vegetação fique mais em stress e tenhamos os pastos mais secos. Vamos ter todo um sistema a funcionar em função destas temperaturas”, explica a geógrafa Maria José Roxo. “Vamos ter de nos adaptar, é essa a palavra.”

As ondas de calor (quando a temperatura máxima diária é superior em cinco graus Celsius ao valor médio durante pelo menos seis dias consecutivos) não são um fenómeno estranho, são até algo “característico do nosso clima continental”, considera Ricardo Deus. O problema é que se têm tornado “mais intensas”, mais longas e deixaram de acontecer só nos meses de Verão. “Isso é algo que nos preocupa a todos.”

Com as alterações climáticas, era esperado que houvesse “esta intensificação das ondas de calor e da seca meteorológica”. Ricardo Deus afiança que existe uma “relação muito directa” com as alterações climáticas. “O clima está diferente”, diz, e é inegável que “há aqui uma contribuição antropogénica muito grande nesta mudança do clima na Terra”.

“É evidente que estas últimas duas décadas têm-se regulado com períodos de temperaturas muito elevadas e às vezes até períodos bastante largos no tempo”, o que tem feito com que sejam batidos recordes atrás de recordes. “Isso é algo com que nos devemos preocupar”, até porque Portugal se encontra numa zona “algo sensível a estas questões da seca meteorológica e das ondas de calor”. “Somos uma região que irá sofrer com estas mudanças.”

Incêndios e aquíferos sem água

Com temperaturas altas, pouca chuva e reduzida percentagem de água no solo, “é de esperar que o risco meteorológico de incêndio também seja mais elevado”, explica o investigador Ricardo Deus. “A tendência do risco de incêndio tem uma dependência forte dos parâmetros meteorológicos, embora não só”, aponta. É uma equação que junta a temperatura do ar, a humidade, a precipitação, o vento, a humidade do solo, mas também as características dos terrenos e da floresta. “Aumentando a temperatura do ar e diminuindo a humidade relativa, estamos a conjugar diversos factores em que provavelmente o risco de incêndio numa situação destas será mais gravoso.”

Mas não se trata só de uma dificuldade com causas naturais. “Os matos ajudam a propagar os incêndios porque não são geridos”, denuncia Maria José Roxo, frisando que os incêndios em Portugal são sobretudo causados pela mão humana. Perante esta vaga de calor, o Governo declarou situação de alerta para incêndios florestais a partir da sexta-feira passada e, entretanto, declarou situação de contingência por causa dos incêndios, que estará em vigor de segunda a sexta-feira.

O IPMA diz também que “os valores de percentagem de água no solo continuam muito baixos em todo o território”, em especial na região interior do Norte e Centro, no Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. Em muitos locais dos distritos de Bragança, Guarda, Castelo Branco, Santarém, Setúbal, Beja e Faro têm “valores inferiores a 10%”. E “não é de esperar que haja recuperação em termos de quantidade de água por precipitação”, diz Ricardo Deus. “A única coisa de que podemos estar esperançados é que que no início do próximo ano hidrológico possamos ter um ano em que a precipitação ocorra e em que os níveis possam ser repostos.”

E, com a falta de chuva, surge outra agravante. “As águas subterrâneas não têm estado a ser recarregadas e esse é um aspecto muito importante”, diz Maria José Roxo. “Durante esta última década, nunca tivemos anos verdadeiramente chuvosos que permitissem recarregar os aquíferos.” Além disso, também não tem havido a “fantástica benesse dos céus” que são os mantos de neve que vão derretendo e infiltrando-se nos solos e recarregando os aquíferos. Como se não bastasse a falta de recarga dos aquíferos, “estamos a explorá-los de uma forma um pouco irracional”, considera, pondo em risco “esses mananciais de água subterrânea”. Nos aquíferos mais perto do mar, a exploração destes recursos pode fazer com que haja intrusões de água salgada, o que por sua vez pode levar à degradação dos solos.