José Luís Jorge caminhou a raia entre Portugal e Espanha: 1400 quilómetros em busca do significado de fronteira
“O que é hoje a fronteira, o que é viver na raia, como é que as pessoas de um lado e do outro dessa linha imaginária se relacionam”? Ao longo de três meses, José Luís Jorge foi percorrendo a divisão da Península Ibérica em dois países. O objectivo é escrever um livro sobre a sua grande caminhada e sobre as vidas que encontrou pelo caminho. Um traço comum: “o envelhecimento”.
Foram cerca de 1400 os quilómetros que José Luís Jorge caminhou quando decidiu percorrer a fronteira mais antiga da Europa, entre Portugal e Espanha. O percurso entre a foz do rio Minho e a foz do Guadiana foi dividido em três etapas e demorou três meses a concluir. O fotógrafo com formação em Comunicação Social, ainda que não seja um novato na prática, assume que nunca tinha feito antes uma viagem desta dimensão.
“Não sou caminhante regular, mas já fiz algumas caminhadas. Subi o Monte Quénia, o Pico nos Açores, a Montanha do Fogo em Cabo Verde. Lembro-me de ter percorrido Viena, Budapeste, Belgrado a pé. Mas nunca tinha feito uma coisa desta envergadura”, conta.
O fotógrafo decidiu percorrer a raia há dez anos, quando se cruzou com o Livro das Fortalezas de Duarte de Armas, escudeiro de D. Manuel que fez o mesmo percurso entre 1509 e 1510 para desenhar as fortalezas do reino de Portugal: “Fiquei entusiasmado com a ideia de fazer o percurso que ele fez. Entretanto os anos foram passando, mas foi uma ideia que nunca esqueci.”
E em 2022, pôs pés a caminho. Com o objectivo de escrever um livro sobre a viagem, José Luís acabou por decidir que durante a caminhada tentaria perceber qual é o significado de fronteira numa Europa de circulação sem entraves, em que os procedimentos alfandegários e de controlo deixaram de existir. “A minha viagem tem um duplo enfoque: seguir os passos de Duarte de Armas, e, acima de tudo, perceber o que é hoje a fronteira, o que é viver na raia, como é que as pessoas de um lado e do outro dessa linha imaginária se relacionam”, explica.
Inicialmente, o plano era o de completar o percurso com uma única caminhada. No entanto, José Luís decidiu dividir a viagem em três etapas. O primeiro troço iniciou-se na foz do Minho, a 27 de Setembro, e foi concluído na Barca D’Alva – onde o rio Douro entra em Portugal nas duas margens – a 29 de Outubro. O caminhante optou por “deixar passar o Inverno” devido ao encurtamento dos dias, voltando à Barca D’Alva a 24 de Março. Seguiu, então, caminho até à Barragem do Cedillo, onde chegou a 18 de Abril. Passadas algumas semanas, a 8 de Maio, concluiu a caminhada, seguindo do local onde tinha parado até Vila Real de Santo António, na foz do Guadiana. Terminou a viagem a 8 de Junho.
“Foram [etapas] muito distintas. Portugal é um país com grandes contrastes. Em termos de paisagem e em termos de pessoas. Somos todos portugueses, é lógico, mas mesmo assim”, conta José Luís. Apesar das particularidades de cada zona, o fotógrafo conta que observou um problema ao longo de quase toda a extensão da fronteira: o envelhecimento. “Passei por muita aldeia com zero crianças, povoações que dentro de 20, 25 anos não existirão. Há uma excepção que é o troço que vai de Caminha até Melgaço”, explica.
A caminhada foi feita a solo, tendo o fotógrafo contado com companhia apenas na Serra na Peneda, ao cruzar-se com um grupo de caminheiros que seguia no mesmo sentido. Foram os únicos dois dias que não viajou sozinho, algo que deixou um sabor agridoce: “Admito que se tivesse encontro aqui e ali alguém, teria sido agradável. Não gostaria de ter feito este caminho sempre com companhia, mas gostava de ter tido companhia de vez em quando.”
Com o objectivo de escrever o livro sobre o percurso em mente, José Luís dividiu o tempo de viagem entre a caminhada, a conversa com as pessoas e, claro, a fotografia.
“Fiz cerca de seis mil imagens e à volta de 80 vídeos. E queria falar com as pessoas. Eu gostava de andar entre 20 e 25 quilómetros por dia. Conseguia fazer isso em meio-dia e ficava o outro meio-dia a trabalhar noutro sentido, para as conversas, para as fotografias”, conta José Luís. Afirma ainda que, enquanto fotógrafo, foi ajudado pelo seu “olhar treinado” a ver pormenores nos quais um não-fotógrafo não repararia.
Com vários pontos altos ao longo do caminho, José Luís não hesita ao apontar aquela que considera “a maior riqueza da viagem”: “O mais importante foram as pessoas que fui conhecendo ao longo do trajecto”. O caminhante lembra o momento “marcante” em que se cruzou com o famoso Padre Fontes em Vilar de Perdizes, Montalegre, mas também a conversa com Carlos Brito, figura incontornável do Partido Comunista Português. Além dos nomes sonantes, revela ter-se cruzado com uma série de protagonistas da fronteira de outros tempos: “Conheci larguíssimas dezenas de contrabandistas, pessoas que faziam a sua vida como contrabandistas. O contrabando foi um modo de vida até aos anos 90.”
No entanto, sublinha que a caminhada não se fez só de bons momentos. Ainda que o Centro de Portugal não tenha oferecido “grandes desafios”, José Luís lembra momentos complicados – e muito distintos entre si – no Norte e no Sul do país.
No Norte, as dificuldades surgiram em quatro patas e de cauda a abanar. “Há imensos cães de grande porte no Norte. E são territoriais. Tive dezenas de confrontos com cães, porque andam soltos e quando vêm um estranho, o normal é mostrarem agressividade”, explica José Luís. Já no Sul, foram as temperaturas elevadas que ofereceram resistência à viagem: “Passei no Vale do Guadiana e apanhei temperaturas muito próximas dos 40º, o que é insuportável para caminhar. Obrigava-me a levantar às cinco da manhã para caminhar de noite.”
Finda a caminhada, José Luís Jorge explica que ao longo da raia encontrou dois povos – um de cada lado da fronteira – que vivem em grande cooperação e irmandade. No entanto, esta realidade já havia quando as fronteiras eram vigiadas.
“Houve e continua a haver inúmeros casamentos entre pessoas dos dois lados. Mesmo quando havia fronteira vigiada pelas autoridades, as pessoas, de um modo geral, já mantinham laços estreitos de um lado e do outro. Estes laços foram reforçados nos últimos 30 anos com a ausência do controlo aduaneiro e policial”, explica. José Luís partilha, também, a explicação que um advogado que conheceu no caminho lhe transmitiu: “Os espanhóis gostam muito de vir a Portugal, aos nossos restaurantes, porque a nossa comida é do agrado deles e mais barata. Nós gostamos de ir às festas deles, porque do lado de lá são mais coloridas e mais enérgicas.”
Três meses e 1400 quilómetros depois, José Luís revela ter-se sentido realizado e, simultaneamente com “um vazio”. “Há quarenta anos que viajo, só não estive num continente, na Oceânia. Já estive em mais de 60 países. E neste momento estou com falta de ideias”, conta. Sobre o futuro, não se compromete em planos, mas levanta possíveis novos desafios: “Talvez vá pensando numa volta ao mundo. Não a pé, claro. Outra possibilidade, mas não está nada definido, era fazer o rectângulo todo. Fiz a raia, um L invertido, agora era fazer o outro L, a nossa costa. Já me ocorreu, não sei se o farei.”
Texto editado por Luís J. Santos