A desordem do mundo e o rabo de Anitta
De uma só penada, a cantora brasileira Anitta, num concerto transmitido via TV, parece ter estimulado uma tríade de ofensas: à pátria, aos bons costumes e ao bom gosto instituído.
A música popular está reflectida na vida de milhões de pessoas. Só por isso deveria ser alvo de atenção. Mas na maior parte das vezes é excluída dos debates públicos, ou tratada com paternalismo, outra forma de omissão. Não é acaso. A música, em si, não incomoda. Mas a música nunca foi apenas música. É fenómeno social total. É experiência individual e colectiva, lugar de confronto de ideias, maneiras de nos posicionarmos no mundo, forma arcaica de atribuição identitária.
O paradoxo é que quanto mais a desvalorizamos, mais à vontade nos sentimos em projectar nela aquilo que somos. Sobre assuntos ditos sérios, resguardamo-nos e medimos as palavras. Sobre música qualquer pessoa diz qualquer coisa e de forma totalmente livre. É por isso que aquilo que é enunciado a partir dela se torna extremamente revelador. Como aconteceu nos últimos dias com as reacções emocionais a um concerto da cantora brasileira Anitta no festival Rock in Rio, em Lisboa. Em primeiro lugar, há que vincar que as reacções se basearam numa transmissão TV, radicalmente diferente de estar presente e absorver uma miríade de estímulos, estando-se entre vários registos, do geral para o particular, ou vice-versa. Em casa, o foco é sempre o particular.
No caso, a anatomia da cantora parece ter hipnotizado a câmara e uma avalanche de portugueses, de pantufas enfiadas, começou a partilhar nas redes sociais as suas impressões sobre a performance. “Porca”, “suja”, “puta” ou “não é preciso abanar o rabo”, foram alguns dos epítetos mais vulgares, havendo menções mais refinadas à “falta de qualidade vocal, da música e das letras”, com avaliações absolutistas como “isto não é música” ou “a rapariga nem sabe cantar”. E, claro, também se viram as habituais menções a ser uma “vendida” e um “produto” de lógica “efémera” que rapidamente será esquecido.
Ou seja, mexeu nitidamente com uma fatia considerável dos que assistiam. Há quatro anos, naquele mesmo palco, havia apresentado um espectáculo muito semelhante, sem nenhuma comoção especial. O efeito TV, e estar a comunicar para uma larga fatia de pessoas que não a conhecia nem se revê no seu grupo de sociabilidades e naqueles códigos fez o resto. A adicionar picante, só um episódio com uma bandeira espanhola (alguém do público lha fez chegar, tendo-a exibido, imagine-se o escândalo!) numa tríade de ofensas: à pátria, aos bons costumes e ao bom gosto instituído.
Não está aqui em causa uma avaliação artística – o mal-estar que provocou em quem estava em casa pouco ou nada teve a ver com isso. As apreciações vocais e outras são meros subterfúgios para justificar que os valores que difunde, as sensações que provoca e a encenação apresentada projectam um mundo do qual aqueles que a censuram não querem fazer parte. O gosto nunca é desinteressado. É uma forma de dizermos que pertencemos a um mundo e não queremos pertencer ao do vizinho. E que mundo é esse de Anitta? Um onde não existe muita sofisticação, onde a música não é dissociável da dança, do prazer e da hiper-sexualização dos corpos. Um mundo onde a cultura pop defende conquistas LGBTQIA+ e critica abertamente Bolsonaro. Não bate certo com modelos consensuais. Os políticos não a querem ao lado. Acham-na imprevisível. E os que estão reféns de modelos pop datados não sabem muito bem como a enquadrar.
O mais fascinante é que aquilo que faz já foi infinitamente digerido, domesticado e globalizado. Imagine-se se o Rock in Rio tivesse sido invadido pelos praticantes originais de ‘baile funk’ brasileiro ou de reggaeton latino, algumas das linguagens e imaginários de que se foi apropriando. Essas tipologias não são dissociáveis da dança que, em termos históricos, ocupou sempre um lugar incómodo no seio da cultura popular ocidental, oferecendo duas imagens distintas dos corpos em movimento. Numa representava o triunfo da disciplina e contenção. Noutra encarnava o modelo de desordem social. Dançar significava resistir às normas de decoro.
Anitta é, em parte, isso. Se a música pode acossar, com dança e suor importuna mais. Por norma, são géneros que brotam no seio de esferas populares, e isso reforça as narrativas que tentam desqualificar. No Brasil, essa é em grande parte a história do samba – inicialmente conotado com narrativas de marginalidade e associado às classes mais desfavorecidas – e tem sido também essa a história das últimas décadas do chamado ‘baile funk’ das favelas, do qual Anitta é uma versão padronizada. Não surpreende que muitas dessas músicas ligadas à dança sejam alvo de discursos onde coloca em causa a seriedade artística, tentando fazer-nos crer que apenas induzem à alienação ou debilitam as capacidades críticas.
Curiosamente, estar em casa a ver TV é que fomenta a passividade. A música e a dança propõem interacção. Para muitos, será através desse binómio que se parece materializar o potencial para a expressão da solidariedade social ou da liberalização pessoal, tentando cumprir com um preceito básico: transformar a vida em algo mais agradável. Anitta é apenas uma peça no meio disso. Está longe de ser uma das mais significativas artisticamente. Mas nestes tempos de conservadorismo precisamos de mais como ela.