Repensar o SNS
É imperativo que se encare o Serviço Nacional de Saúde de forma diferente, sendo três as áreas que é mais urgente reorganizar: cuidados de saúde primários; serviços de urgência; e carreiras médicas e serviços hospitalares.
Todos os anos, chegados ao verão, voltam as notícias sobre a situação calamitosa dos hospitais, com urgências a fechar por falta de médicos. O problema, infelizmente, já não é novo!
Há cerca de 60 anos, um meu antigo director participou num congresso internacional em que se debatia a organização dos serviços de urgência. Quando ele explicou o funcionamento do “banco” do Hospital S. José, teve de escrever no quadro o número de doentes que aí eram atendidos diariamente, pois pensavam que tal seria um erro devido ao seu inglês pouco fluente. Nem queriam acreditar!
Já então a discrepância entre a nossa organização hospitalar e a de outros países era gritante. Sessenta anos volvidos, a estrutura de funcionamento dos nossos hospitais, em que o serviço de urgência é o núcleo central do hospital, pouco evoluiu.
É portanto necessário e imperativo que se encare o SNS de uma forma diferente do que tem sido feito, sendo três as áreas que me parece mais urgente reorganizar:
Cuidados de saúde primários
Na origem da (des)organização do SNS está a insuficiente rede de cuidados médicos primários, levando a que as pessoas procurem resolver a sua situação clínica na urgência do hospital, apesar das deficiências que esta apresenta.
O número de pessoas sem médico de família é actualmente de cerca de 1,3 milhões e os que têm algum tipo de seguro de saúde é de aproximadamente 4 milhões. Ou seja, mais de metade das pessoas em Portugal ou não tem médico assistente ou tem alternativa fora do SNS. Para os muitos que utilizam o SNS a situação não é aceitável: é inadmissível que num país europeu no século XXI, em alguns centros de saúde, as pessoas tenham de fazer fila desde as 6 da manhã para serem atendidas, ou que devam esperar meses, às vezes anos, para uma consulta de especialidade ou cirurgia.
A solução para o acesso universal à saúde, em tempo útil, passa pela possibilidade de todos terem um seguro de saúde, do tipo da ADSE, que permitisse ao cidadão escolher o médico assistente no SNS, numa policlínica, nas misericórdias ou na medicina privada, podendo os médicos desses serviços receituar e prescrever exames complementares da mesma forma que os do SNS. Sistemas europeus como os da Holanda, Suíça, Áustria ou Noruega, dos mais bem cotados no ranking do Health Care Index, onde o financiamento da saúde é um misto de público e privado, devem merecer uma avaliação e adaptação pelo nosso Governo, sem complexos ou demagogias, abandonando o actual sistema em que o “médico de família” só pode ser o do centro de saúde e só este pode pedir exames comparticipados pelo SNS, ou passar atestados médicos.
Argumentar que são sistemas financeiramente incomportáveis não será muito realista quando se analisam apenas os custos não contando com os prejuízos para a saúde, e mesmo para a economia, que o actual sistema acarreta: longos tempos de espera, numerosas baixas prolongadas, descoordenação entre as entidades prestadoras de saúde, públicas e privadas, o que leva à duplicação de exames complementares e consultas e, necessariamente, a maiores gastos financeiros.
Serviço de Urgência
Nas escalas deste serviço são incluídos todos os médicos, mesmo os de especialidades não directamente envolvidas em situações de urgência, retirando-os dos seus serviços e consultas, pois é preciso que o número de médicos no “banco” seja adequado ao elevado número de doentes, urgentes e não urgentes, que diariamente aí acorrem.
Com a instituição de um seguro universal, a saúde seria mais acessível a todos e a urgência passaria a cumprir a sua real função: tratar eficazmente os casos urgentes! Na organização destes serviços deve igualmente proceder-se a uma mudança radical, assente num corpo clínico permanente com a competência/especialidade em urgência. Estas equipas deverão incluir igualmente os médicos mais jovens - internos do Internato Geral e dos primeiros anos da especialidade - que cumprirão parte do horário na urgência, assim complementando a sua formação clínica. Desta forma os médicos mais graduados poderão dedicar-se na totalidade ao exercício da sua especialidade, podendo ser sempre solicitados para colaborar nalguma situação urgente da sua competência.
Carreiras médicas e serviços hospitalares
As carreiras médicas têm estado suspensas e foram muito desprestigiadas nos últimos anos, não tendo sido devidamente equacionado o número de novos médicos versus os que se reformam ou que saem do SNS para outras instituições.
É urgente que se repense a estruturação e remuneração destas carreiras e que aos médicos seja dada uma maior participação e poder de decisão na organização hospitalar, actualmente muito antiquada e desajustada, sem burocracias ou programas inúteis. Desmotivação, falta de condições e baixos salários - um chefe de serviço no final de carreira aufere um salário líquido de 2400 euros - são as razões que levam ao abandono do SNS.
Estas são as áreas que me parecem primordiais para repensar o SNS e o tornar de facto universal e tendencialmente gratuito. Continuar a utilizar a mesma fórmula para se tentar chegar a outro resultado não é compreensível, nem mesmo aceitável!