Viagem ao ITER, onde a energia das estrelas vai estar ao alcance das mãos
No Sul de França está a ser construída, laboriosamente, uma máquina que quer provar que a fusão nuclear é viável. É o sonho de ter electricidade sem emissões de CO2 nem os problemas de segurança das actuais centrais de fissão.
Há um ruído de fundo, um “huuumm” de máquinas a trabalhar em contínuo no recinto de montagem do ITER, o maior reactor de fusão nuclear do mundo, que está a ser construído em Saint Paul-lez-Durance, no Sul de França, a cerca de 70 km de Marselha. Do outro lado de pesados plásticos brancos, está o poço do tokamak – a máquina que será a melhor aproximação na Terra a criar uma estrela dentro de uma garrafa.
De capacete, colete amarelo reflector e botas especiais para andar no estaleiro de obras, deixam-nos espreitar lá para dentro do cimo de uma plataforma metálica: já lá está montado o primeiro sector da câmara de vácuo onde serão feitos plasmas aquecidos a 150 milhões de graus – uma temperatura dez vezes superior à do coração do Sol –, com os quais os cientistas esperam desencadear reacções de fusão nuclear aqui na Terra.
A reacção de fusão produz quatro vezes mais energia que a fissão nuclear, que se faz há décadas, e quatro milhões de vezes mais do que carvão, gás ou petróleo (combustíveis fósseis). Por isso, o projecto que está a ser construído no Sul de França – em que participam a União Europeia, os Estados Unidos, a Rússia, a China, o Japão, a Coreia do Sul e a Índia, num total de 35 países – é na verdade uma demanda pela energia do futuro. O investimento nesta solução já ultrapassa os 21 mil milhões de euros.
ITER é a sigla em inglês de Reactor Termonuclear Experimental Internacional, mas em latim “iter” também significa “o caminho”, e esse é o mote deste projecto, que começou com muitos atrasos mas que tem recuperado nos últimos anos. “Os sistemas de apoio estão quase prontos. A produção dos componentes, que está a ser feita em vários países, está cerca de 85% completa. O trabalho de construção civil está 80% completo. Mas se pusermos tudo junto, design, montagem, toda a produção, até ao primeiro plasma, dizemos que cerca de 75% do caminho está feito”, explicou ao PÚBLICO Laban Clobentz, responsável pelo departamento de comunicação do ITER, no seu gabinete, junto à janela de onde se vê grande parte do estaleiro de construção.
A fusão nuclear promete electricidade limpa, sem emissões de gases com efeito de estufa, quase sem resíduos e segura. É a energia das estrelas aqui na Terra. O problema é que, até agora, as experiências feitas em vários reactores experimentais nunca conseguiram produzir uma reacção de fusão nuclear sustentada que produzisse mais energia do que aquela que é necessária para que aconteça.
Assim sendo, será que a fusão vai mesmo ter um papel importante como uma energia alternativa? “Hombre, sim, é por isso que toda a gente está aqui a trabalhar!”, responde o físico espanhol Alberto Loarte, director da Divisão de Ciência do ITER. “As energias renováveis são muito importantes, obviamente, mas têm uma certa limitação: são intermitentes. Ou seja, é produzida energia quando há vento, quando há sol, mas de noite não há sol. Precisamos de outro sistema de produção de energia que seja constante, que se possa controlar, que não dependa de ter chovido num ano ou de fazer sol ou vento”, responde.
Um donut magnético
A máquina que está a ser montada terá um milhão de componentes e vai pesar 23 mil toneladas quando estiver terminada, o que é o peso de três torres Eiffel. Será um reactor do tipo tokamak, em que se fará o confinamento magnético de plasmas superaquecidos, com o objectivo de produzir dez vezes mais energia do que a usada para que aconteça a reacção de fusão: 500 MegaWatts (MW) de potência a partir de 50 MW de calor, durante pulsos de 400 a 600 segundos.
Pretende ser a primeira experiência de fusão nuclear a conseguir produzir energia líquida – quando a energia total produzida durante uma reacção de fusão num pulso de plasma ultrapassa a energia térmica injectada para aquecer esse plasma.
Um tokamak tem a forma de um donut ou pneu (um tórus). Tem um campo magnético toroidal criado por vários ímanes dispostos à sua volta e um potente íman no centro, o solenóide central. Estes campos magnéticos permitem controlar o plasma. Quando estiver pronta, esta máquina de confinamento magnético de plasmas de alta temperatura terá a capacidade 830 metros cúbicos. Será como criar uma garrafa para pôr lá dentro uma estrela.
Mas como se trata de um reactor experimental, apesar do seu gigantismo, o ITER não vai produzir energia para a rede eléctrica. Isso só acontecerá com futuras centrais, se o ITER demonstrar que a fusão nuclear é viável. “Tudo o que já foi tentado na investigação sobre fusão nuclear durante 60 anos, no Ocidente e no Oriente, está a concretizar-se aqui com o ITER. É o culminar de tudo o que sabemos, feito à dimensão da indústria”, resume Sabina Griffth, do departamento de Comunicação do ITER, que guiou o PÚBLICO numa visita às obras do complexo.
É preciso ir de carro para percorrer o estaleiro do ITER. Há enormes edifícios que parecem hangares, cinzentos, pretos e bege. Para entrar no edifício do tokamak, é preciso limpar as botas antes de entrar num sistema de escovas e forrá-las com uns pezinhos de plástico. Na cabeça, por debaixo do capacete amarelo, é preciso por uma toca de papel, para que não espalhemos cabelos pelo que tem de ser um edifício o mais limpo possível, embora esteja ainda em construção.
Lá dentro, é um labirinto de escadas, corredores e halls onde há pessoas a trabalhar, cabos e tubos flexíveis vermelhos e verdes, e muitas divisões isoladas com pesadas cortinas de plástico. Numa dessas cortinas há um fecho éclair que protege a área de acesso ao poço do tokamak, que encerra uma abertura da altura de uma pessoa. Abrindo-a, acede-se a um dos níveis do poço circular onde está a ser montada a máquina do ITER.
Sopa de partículas
Quando estiver a funcionar, aquela grande máquina será como um donut recheado. O doce do recheio serão os plasmas superaquecidos, ilustra Sabina Griffith.
Podemos encontrar um plasma numa lâmpada, diz Coblentz. “Numa lâmpada como esta, tem-se gás”, diz, apontando para o tecto do seu gabinete no ITER. “Mas quando a electricidade passa por ela, ioniza-se o gás, o que quer dizer que os núcleos dos átomos se separam dos electrões e fica tudo sem carga. É uma sopa de partículas, já não tem átomos, tem núcleos e electrões. Isso também acontece no tokamak”, explica.
O objectivo é injectar no reactor duas formas de hidrogénio, deutério e trítio, submetendo-as a altíssimas temperaturas, para que o gás se transforme num plasma, um milhão de vezes menos denso que o ar que respiramos.
Da reacção de fusão entre o deutério e o trítio resulta um átomo de hélio e um neutrão. O hélio contribui para o aquecimento do plasma. “Já o neutrão não tem carga eléctrica. Por isso escapa ao campo magnético do reactor, e é assim que o calor sai da máquina”, diz Laban Coblentz, manipulando um modelo simples do reactor do ITER, com peças pretas, vermelhas, rosa, azuis e verdes, que está numa mesa no seu gabinete, junto à grande janela de onde se vê quase todo o estaleiro de construção do complexo.
“O neutrão escapa-se, bate na parede, transfere a sua energia cinética, como uma bala que é disparada, e a energia cinética transforma-se em calor. A água que existe por trás das paredes do reactor é aquecida e, numa central comercial, produziria vapor que activaria turbinas, e assim se produziria electricidade”, explica Coblentz.
Fusão e fissão
“Há duas maneiras de obter energia nuclear”, esclarece Alberto Loarte. Uma é a fusão nuclear, outra é a reacção oposta, a fissão nuclear, que acontece nas centrais que existem há décadas. “A fissão divide os núcleos de átomos pesados. E quanto mais pesado o núcleo, mais energia se obtém, por isso se utiliza urânio, que é o núcleo mais pesado que há”, explica Alberto Loarte. “Por outro lado, a fusão nuclear funde núcleos de elementos ligeiros em mais pesados. Isso é o que acontece nas estrelas. Usam hidrogénio para fazer hélio”, adianta.
No ITER, os cientistas querem fazer plasmas superaquecidos de deutério e trítio, dois tipos de hidrogénio. Mas se o deutério pode ser extraído da água do mar (em média, existem 30 g por metro cúbico), explica ao PÚBLICO Bruno Soares Gonçalves, Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, há quantidades ínfimas do isótopo radioactivo do hidrogénio, o trítio. Estima-se que existam apenas 20 kg no planeta.
Se esta quantidade chega para as experiências que se vão fazer no ITER, nunca bastaria para tornar viável a fusão comercial. Mas é possível produzir trítio a partir do lítio, um metal leve abundante, no próprio tokamak. “Um reactor de fusão que tenha de funcionar durante dezenas de anos tem de fabricar o seu trítio, e para isso usa-se a reacção do neutrão produzido pela fusão nuclear com o lítio. Esse fluxo de neutrões pára no lítio que está na parede da câmara de vácuo, que aquece, decompõe-se e produz-se trítio”, explica Alberto Loarte.
“Na parede interior do ITER teremos quatro metros quadrados que vamos utilizar para demonstrar a tecnologia de como parar os neutrões no lítio e retirar o trítio.” No entanto, ao pararem os neutrões, as paredes do reactor degradam-se. “No ITER, como vai funcionar num tempo curto, esses danos são muito baixos e não será preciso fazer nada. Mas num reactor de fusão, será necessário parar periodicamente, tirar a cobertura interior e pôr uma nova. Há sistemas de robótica para a tirar que estão a ser concebidos”, garante o cientista espanhol.
Então isto quer dizer que um reactor de fusão nuclear não é completamente livre de resíduos? “Os resíduos num reactor de fusão são os metais que compõem os reactores, principalmente aço activado [tornado radioactivo] por neutrões”, explica Alberto Loarte. Estão a ser desenvolvidos aços especiais de baixa activação para usar no revestimento dos reactores de fusão para que possam ser reutilizados rapidamente, adianta.
Mas estes resíduos são muito diferentes dos das centrais de fissão nuclear. “São como os resíduos radioactivos que se produzem, por exemplo, num hospital quando se fazem tratamentos para o cancro. Em princípio não têm nenhum uso militar, deixam de ser radioactivos em dezenas de anos, centenas de anos, não milhões de anos. E não é preciso fazer nada de especial”, assegura.
Três gramas de combustível
A quantidade de combustível que se vai usar é ínfima. “Num reactor de fissão nuclear, usa-se cerca de 200 toneladas de urânio ou plutónio como combustível. Aqui no tokamak, para um tamanho equivalente, usamos duas a três gramas de combustível (deutério e trítio)”, diz Laban Cloblentz. “Isto porque funcionamos com plasmas, que têm densidades muito baixas. Mas com esta quantidade de combustível gera-se uma reacção suficientemente poderosa”, diz.
Ao usar-se uma quantidade tão reduzida de combustível, a operação de um reactor de fusão torna-se muito mais segura. “É muito difícil de conseguir a reacção de fusão, e se alguma coisa parar, simplesmente acaba. Não há uma reacção em cadeia, não há um cenário equivalente ao derretimento do núcleo de uma central nuclear convencional. Não se pode duplicar um acidente como o de Tchernobil ou Fukushima”, garante Laban Coblentz.
Mas o que torna tão difícil alcançar a fusão nuclear de uma forma útil, ou seja, produzindo mais energia do que a que se gasta no processo? Isabel Nunes, portuguesa que trabalha no Departamento de Operações do ITER, responde: “É manter o plasma. Não é fazer a fusão, chegar lá. Ainda há pouco tempo o Joint European Torus (JET, no Reino Unido) o fez, e há alguns anos já o tinha conseguido. O mais difícil é manter o plasma, porque tem instabilidades. O que temos de aprender é a controlar essas instabilidades”, disse ao PÚBLICO.
“O ITER já é um grande passo, é uma experiência. Agora, ao juntarmos tudo, temos de perceber como é que podemos ter um plasma de maneira a ser possível retirar energia para produzir electricidade”, refere Isabel Nunes, cuja função é garantir que todos os componentes da máquina do ITER funcionam de acordo com o esperado. “Sou responsável pelo comissioning, que não tem bem tradução em português. Por exemplo, fazem-nos a entrega de uma fonte de energia para as bobinas [os ímanes], e temos de verificar se correspondem à especificação que foi pedida, que operam sem problemas”, esclarece a cientista.
O grande “D”
O primeiro dos nove sectores que formarão a câmara de vácuo do tokamak que já foi montado no poço do reactor parece um enorme “D” metálico, com algumas partes coloridas, protuberâncias, ainda um pouco de plástico cor-de-rosa a cobri-lo. Está na vertical, sobre uma base, e tem uma altura de seis andares. Os nove sectores vão formar uma estrutura circular oca.
Três destas secções, fabricadas pela Coreia do Sul, já chegaram a Saint Paul-lez-Durance. Outra está também erguida no edifício de montagem. Ouve-se um “pi-pi-pi” contínuo: é um trabalhador que sobe na cabina do braço articulado de um guindaste laranja, até ao topo. As outras seis secções estão a ser fabricadas na Europa.
Cada sector terá acoplados dois enormes ímanes também em forma de “D” (bobinas toroidais), que ajudam a confinar o plasma dentro da câmara de vácuo. No seu interior têm supercondutores feitos com cabos que contêm cerca de 1400 fibras de nióbio e estanho, que têm de funcionar a temperaturas muito baixas. Enquanto supercondutores, não apresentam resistência eléctrica e, portanto, podem conduzir correntes muito maiores do que o normal, criando campos magnéticos intensos.
Laban Coblenz mostra um cabo prateado, com muitas fibras metálicas entrelaçadas lá dentro: “Isto é verdadeiro: é um cabo supercondutor. Vê o cor-de-laranja? Tem algum cobre, mas o material principal é ou nióbio e estanho ou nióbio e titânio, com o canal no meio para passar hélio líquido para o arrefecer até 269 graus negativos.”
Esta primeira secção foi colocada no poço do reactor em meados de Maio, numa delicada operação que durou uma semana. “Com umas ferramentas gigantes que existem no edifício de montagem, foi levantada num ângulo de 90 graus. Os guindastes que estão no nível superior pegaram nela e posicionaram-na noutra ferramenta. Finalmente, todo o conjunto foi levantado por um guindaste”, explicou Laban Coblentz. “É um exercício em tamanho e precisão”, diz.
“Para manter o plasma precisamos de manter o vácuo, de ter o interior do tórus limpo”, refere ainda Isabel Nunes. “A pressão tem de ser mantida muito baixa e temos aparelhos que medem a composição do vácuo. Por exemplo, não podemos ter água, nem oxigénio, porque são gases que reagem, emitem uma radiação que impede que se faça a ionização do plasma”, exemplifica. “Temos de fazer a limpeza, o que chama o baking, o cozinhar, que é para remover todas essas impurezas das paredes para conseguirmos ter as melhores condições para fazer plasma”, explica.
À volta da câmara de vácuo serão instaladas as seis bobinas poloidais – seis enormes ímanes circulares com um diâmetro que varia de oito a 24 metros, conforme a sua posição no topo ou na parte mais bojuda do reactor. Pesam entre 200 e 400 toneladas, e a maioria está a ser fabricada no complexo do ITER – porque o seu diâmetro ultrapassa o limite do que pode ser transportado por estrada.
O recinto do poço é circular, tem vários andares, e há trabalhadores nos vários níveis – e uma quantidade enorme de estruturas metálicas e tubos vermelhos. No centro, fica um enorme íman, o solenóide central. “Será o maior e mais poderoso íman alguma vez construído”, diz Sabina Griffith.
Com 18 metros de altura, quatro metros de diâmetro e mil toneladas, o solenóide central vai induzir 15 milhões de amperes de corrente eléctrica no plasma e dar-lhe estabilidade vertical. “É o bater do coração do ITER. Tem 13 tesla de força magnética, o que é muito poderoso. Pode levantar literalmente dois aviões”, exemplifica Griffith.
Como todas as componentes do ITER, está a ser fabricada pela indústria de um dos países-membros – neste caso os Estados Unidos. “Está a ser enviado para aqui em seis módulos. O primeiro chegou no ano passado, é uma grande rodela que está no edifício de montagem, e o número 2 está a caminho”, diz Griffith. Este é um aspecto importante do ITER, sublinha: “Enquanto está a ser construído, está-se a desenvolver ao mesmo tempo a indústria da fusão nuclear, e a formar pessoas”.