O oceano é uma “sopa” de ingredientes para medicamentos e cosméticos

As propriedades de algas, corais e muitos outros seres marinhos podem ser usadas para, por exemplo, combater tumores, fortalecer o sistema imunitário, ajudar à decomposição do plástico e diminuir a formação de rugas. São muitos outros os possíveis usos dos recursos marinhos.

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Corais, como outros seres marinhos, têm enzimas, lípidos e pigmentos que podem vir a ser aproveitados na produção de implantes ósseos e válvulas cardíacas artificiais, por exemplo Adriano Miranda

O mar é uma “sopa” de bactérias, algas, vírus, fungos, corais, esponjas, peixes, moluscos e crustáceos, dos quais se extraem “ingredientes” para medicamentos contra o cancro, cosméticos anti-rugas, suplementos alimentares, rações para animais, fertilizantes e descontaminantes.

Os possíveis usos dos recursos marinhos — que a agência Lusa exemplifica a propósito da Conferência dos Oceanos da Organização das Nações Unidas, que se realiza em Lisboa de 27 de Junho a 1 de Julho — são muitos, e protegidos até por patentes, mas muitas das potencialidades continuam por descobrir debaixo de água — ou até já foram recolhidas em terra, mas as suas propriedades permanecem por decifrar.

Segundo o presidente do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar), Vítor Vasconcelos, apenas se conhece 10% da biodiversidade marinha.

No Ciimar, em Matosinhos, que tem um biobanco de microrganismos marinhos, trabalha-se na “solução de um problema baseada na natureza”, disse Vítor Vasconcelos à Lusa.

No caso, trabalha-se com o que o mar tem: por exemplo, já foi ensaiada a utilização de bactérias para despoluir água contaminada com petróleo e estão a ser testados novos compostos para produzir tintas que protejam os navios da incrustação de organismos, processo que leva à redução da velocidade das embarcações e aumenta a sua necessidade de combustível.

Sabe-se que os metabolitos (substâncias resultantes do metabolismo) que são produzidos por esponjas inibem o crescimento das algas nos cascos dos navios. Muito comum nas praias do norte de Portugal, o sargaço (algas de cor acastanhada) tem sido usado como adubo e pode ser uma matéria-prima promissora para a produção de biogás, que, por sua vez, pode ser utilizado como biocombustível ou gerar electricidade.

Fonte de proteínas e possuindo propriedades antioxidantes e anticancerígenas, as microalgas são usadas em suplementos alimentares humanos e rações para animais, incluindo cães e gatos, gado e peixes de aquacultura. Às microalgas são também atribuídos benefícios para a pele, pois filtram a radiação ultravioleta e diminuem a formação de rugas, e para a agricultura, pois produzem bioestimulantes como minerais e vitaminas que promovem o crescimento e a resistência de culturas como a dos cereais. As microalgas filtram, igualmente, nutrientes, metais pesados e compostos farmacêuticos da água do mar.

De acordo com o mais recente dos relatórios sobre conservação marinha World Ocean Reviews, estima-se que existam cerca de 2,2 milhões de espécies marinhas diferentes, incluindo animais, plantas e fungos, das quais perto de 230 mil foram descritas cientificamente.

O número dos vários tipos de bactérias, vírus ou arqueas (seres unicelulares morfologicamente semelhantes às bactérias, mas distintos do ponto de vista genético e bioquímico) é desconhecido, mas, segundo o World Ocean Reviews, estes seres constituem a maior parte da vida oceânica: uma gota de água do mar pode conter até 350 mil espécies diferentes de bactérias e outros microrganismos.

Cientistas descobriram aproximadamente 34 mil metabolitos secundários diferentes em organismos marinhos, muitos deles com relevância para a investigação farmacêutica, pois matam bactérias e vírus, combatem tumores e doenças fúngicas, fortalecem o sistema imunitário, inibem a inflamação e a diabetes, diminuem o risco de doença cardíaca e protegem o corpo da radiação ultravioleta.

De uma espécie de esponja abundante no mar das Caraíbas, a Tectitethya crypta, foram extraídas as substâncias espongouridina e espongotimidina, que serviram de base a um medicamento anti-retroviral aprovado em 1987 para o tratamento da sida, bem como a dois fármacos usados no tratamento do cancro do sangue e de infecções virais.

O colagénio, uma proteína gelatinosa que garante a elasticidade da pele e melhora a saúde das articulações, pode ser retirado de restos de peixe.

Substituir (e até mesmo decompor) o plástico

Os cientistas que estão envolvidos no campo da biotecnologia estudam os organismos marinhos à procura de moléculas e componentes eficazes, extraem-nos, descrevem a sua estrutura química, exploram a sua função e procuram possíveis usos comerciais, desde a indústria alimentar até à cosmética e a farmacêutica.

É o que faz Deborah Power, do Centro de Ciências do Mar do Algarve (CCMar), onde coordena a secção de aquacultura e biotecnologia, que, conforme descreveu, “tem como “bandeira” o desbloquear do potencial dos recursos marinhos”. No CCMar explora-se, por exemplo, o potencial das microalgas no tratamento de esgotos domésticos e agro-industriais e das plantas tolerantes à salinidade (halófitas) como fonte de suplementos alimentares, cosméticos e medicamentos.

Componentes químicos obtidos a partir de microalgas, mas também de macroalgas, bactérias e fungos marinhos são utilizados na indústria como conservantes naturais, pigmentos, estabilizantes, espessantes e ligantes, assim como suplementos alimentares e pré-bióticos. As enzimas de fungos marinhos podem ainda ser usadas para limpar solos poluídos com cobre e zinco e para descolorir tecidos ou papel.

Limpas, tratadas, secas e moldadas, as macroalgas podem ser utilizadas como talheres descartáveis, sendo que várias substâncias nelas contidas são úteis para produzir materiais de embalagem, substituindo o plástico. Há ainda o quitosano, substância que pode encontrar-se no esqueleto dos crustáceos e que tem propriedades cicatrizantes e protege as sementes e folhas de plantas de ataques microbianos.

Os cientistas estão cientes de que certos microrganismos marinhos produzem enzimas que podem decompor plásticos e outros materiais sintéticos à base de petróleo, mas a extensão dessa decomposição e a forma como esses processos podem ser utilizados no combate à poluição ainda estão a ser estudados.

Neste “mundo submerso” há algas, corais, ouriços-do-mar, conchas, medusas, esponjas e mexilhões que têm enzimas, lípidos, pigmentos, minerais e materiais cerâmicos que podem vir a ser aproveitados na produção de novos materiais com aplicação médica, nomeadamente para implantes ósseos e válvulas cardíacas artificiais.