O forte da Guia é um laboratório onde se estudam os efeitos das alterações climáticas

No Laboratório Marítimo da Guia, em Cascais, cientistas estudam o ordenamento do espaço marítimo e os efeitos das mudanças do clima em várias espécies aquáticas, assim como exploram as potencialidades do ouriços-do-mar como iguaria gourmet.

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Douradas num tanque onde são estudados os efeitos das ondas de calor e da desoxigenação dos oceanos em ecossistemas marinhos LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
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A investigadora Marta Pimentel estuda o impacto das ondas de calor e da desoxigenação dos oceanos nos cavalos-marinhos LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
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Tiago Repolho trabalha com ouriços-do-mar numa experiência de aquacultura de gónadas, mais conhecidas como ovas e consideradas uma iguaria gourmet com alto valor comercial LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
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Depois de alimentados com milho e expostos depois a um período de jejum, os invertebrados são alimentados com rações feitas de compostos naturais ou artificiais, para verificar o seu efeito na formação das gónadas LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
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Os cientistas recorrem a embriões de tubarão pata-roxa para estudar o impacto da desoxigenação dos oceanos LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO

Numa antiga fortificação militar em Cascais, “esconde-se” um laboratório onde cientistas testam não só os efeitos das alterações climáticas em embriões de tubarão, algas e cavalos-marinhos, mas também as potencialidades gastronómicas de ouriços-do-mar.

O Laboratório Marítimo da Guia ocupa o forte de Nossa Senhora da Guia, erguido no século XVII numa falésia de onde se avista a Laje do Ramil, por onde, em 28 de Julho de 1580, as tropas espanholas comandadas pelo duque de Alba entraram em solo português.

O interior das instalações é acanhado, por vezes labiríntico, ostenta mobiliário “parado no tempo”, anexos improvisados que estão a precisar de obras, sendo património da Universidade de Lisboa — à qual o forte, desactivado no século XIX, foi cedido em 1941 para acolher a secção marítima do então Museu Bocage, do qual resiste uma placa à entrada.

O laboratório, que herdou muito do trabalho feito pelo biólogo marinho Luiz Saldanha — que o reactivou como unidade de ensino e investigação da Faculdade de Ciências de Lisboa em 1975 —, é hoje um dos pólos do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare). Antes, integrou o Instituto do Mar e o Centro de Oceanografia da mesma faculdade.

A Universidade de Lisboa considera que, apesar das “necessárias transformações e dos consequentes acrescentos algo inestéticos e descaracterizadores” que foram feitos ao longo de vários anos, o forte “mantém algum do seu traço original e adapta-se ao funcionamento do laboratório que o ocupa”.

Rui Rosa, um dos cerca de 25 investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que trabalham no laboratório, além de estudantes de mestrado e doutoramento, não se deixa demover pelo estado das instalações, onde coordena o grupo de investigação que estuda o impacto do “trio mortal” das alterações climáticas nos oceanos — aquecimento, acidificação e perda de oxigénio — desde “as moléculas até aos ecossistemas” marinhos.

“Embora a infra-estrutura do Laboratório Marítimo da Guia seja antiga e haja vários problemas logísticos, é um privilégio trabalhar num sítio único e com uma história ímpar, que vem desde 1642”, data de construção do forte, afirmou à agência Lusa Rui Rosa, ex-aluno de Luiz Saldanha, que morreu em 1997.

Do tempo do professor da Faculdade de Ciências de Lisboa que se destacou no estudo da fauna marinha do Atlântico Nordeste, e que começou a sua carreira como naturalista do Museu Bocage, há fotos num quadro ao lado de uma escada de pedra em forma de caracol por onde se desce, depois de se atravessar a sala de arquivo que serve também para convívio e refeições, aos espaços exíguos onde estão os tanques e aquários com água bombada directamente do mar que permitem realizar diversas experiências científicas, entre um emaranhado de tubos, cabos e fios ligados a tomadas.

Um dos aquários tem embriões de tubarão pata-roxa (Scyliorhinus canicula), com os quais Rui Rosa e a restante equipa se propõem estudar o impacto da desoxigenação dos oceanos.

“Simulamos a diminuição dos níveis de oxigénio no oceano previstos para o futuro nos nossos sistemas aquáticos de suporte de vida e avaliamos parâmetros neurofisiológicos, imunológicos e comportamentais”, explicou, acrescentando que os embriões serão depois eutanasiados para que possam ser feitas “análises moleculares e fisiológicas”.

“Todo este tipo de experimentação animal exige autorizações e certificados específicos emitidos pelos órgãos competentes”, ressalvou, assinalando que o seu grupo de investigação usa preferencialmente como modelo espécies em estados iniciais de vida “porque são mais vulneráveis aos efeitos da mudança global” do clima.

Experiências que simularam a acidificação do mar (aumento da acidez causada pelo aumento de dióxido de carbono [CO2]) revelaram impactos distintos em algas e bivalves.

“As macroalgas parecem beneficiar do aumento de CO2 no oceano porque o utilizam para a fotossíntese, enquanto espécies que precisam do carbonato de cálcio para produzir os seus exoesqueletos e conchas, como os bivalves, têm mais problemas quando temos um ambiente mais ácido”, salientou Rui Rosa.

Dos ouriços-do-mar ao ordenamento do espaço marítimo

Num espaço esconso com prateleiras cheias de frascos, Vanessa Lopes trabalha com culturas de microalgas que produzem toxinas com efeitos paralisantes. A especialista em toxicologia marinha quer aferir como as ondas de calor ou a acidificação afectam as microalgas e depois a restante cadeia alimentar, como bivalves e douradas. Espera ter os primeiros resultados ainda este ano.

A poucos passos, num espaço mais amplo, Tiago Repolho trabalha com ouriços-do-mar numa experiência de aquacultura de gónadas, mais conhecidas como ovas e consideradas uma iguaria gourmet com alto valor comercial.

O investigador pega com mestria nos ouriços-do-mar cuja adaptação ao ambiente laboratorial é feita em tanques que mais parecem caldeirões, de cor preta para mimetizar as rochas onde vivem, e onde são alimentados com milho, fonte de hidratos de carbono.

Numa fase seguinte, e após um jejum forçado, os invertebrados serão alimentados com diferentes rações, feitas de compostos naturais ou artificiais, para que possa ser verificado o seu efeito na formação das gónadas. No final, num teste de degustação às cegas, um grupo de pessoas será chamado “a provar as gónadas e dar a opinião sobre a textura, o gosto, o cheiro e a forma”, esclareceu Tiago Repolho.

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Tiago Repolho trabalha com ouriços-do-mar numa experiência de aquacultura de gónadas JOSÉ SENA GOULÃO

Ao contrário dos colegas, Catarina Frazão Santos não trabalha no meio de tanques e aquários, apesar de ser bióloga marinha, mas num gabinete com um computador onde estuda planos e leis.

Especialista em ordenamento do espaço marítimo, a investigadora pretende perceber como é que este ordenamento, que define os diferentes usos do mar, como transportes, pesca, turismo ou aquacultura, pode ser afectado pelas alterações climáticas e depois encontrar soluções, que podem passar por proteger certas áreas ou promover outras para a utilização de energias renováveis ou de transportes com combustíveis mais ecológicos.

Portugal tem um plano de ordenamento do espaço marítimo, mas, como “a maior parte” dos planos no mundo, “não incorpora as alterações climáticas”, denunciou Catarina Frazão Santos, cujo “próximo passo” da sua investigação é estudar o caso português.

Rui Rosa, Vanessa Lopes, Tiago Repolho e Catarina Frazão Santos esperam que a Conferência dos Oceanos da Organização das Nações Unidas, que se realiza de 27 de Junho a 1 de Julho em Lisboa, sirva para aumentar a consciencialização para o uso sustentável dos oceanos, a bem de todos.

A investigadora Marta Pimentel, que está a estudar os efeitos das ondas de calor e da falta de oxigénio nos cavalos-marinhos, avaliando o seu metabolismo e comportamento, acrescenta outro tópico: dar “voz aos cientistas” para que as acções, que têm falhado por parte dos decisores políticos, avancem em concreto.

No Laboratório Marítimo da Guia, o cavalo-marinho é não só um objecto de estudo e uma atracção para o público escolar, mas também a “face” de uma peculiaridade: é este animal que dá forma ao batente da porta que anuncia quem quer entrar... Num espaço que outrora foi uma fortificação militar.

Onde se investiga o mar em Portugal?

Em terra e no mar, o oceano é estudado em Portugal por centros de investigação desde o Algarve aos Açores, envolvendo centenas de cientistas em trabalhos sobre preservação de recursos marinhos, aquacultura sustentável, alterações climáticas e bioprodutos com aplicações diversas.

A propósito da Conferência dos Oceanos, a Lusa montou um roteiro das instituições científicas portuguesas ligadas ao mar, baseando-se em informação que consta no Atlas das Unidades de Investigação 2022, editado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, e nas páginas oficiais das instituições na Internet.

O Laboratório Marítimo da Guia é uma dessas instituições e o mais antigo centro de investigação deste roteiro. O seu trabalho visa promover a “alfabetização oceânica” e o “estado saudável” de oceanos, mares, estuários, rios e bacias, bem como desenvolver “conhecimento científico e tecnologia sólida para ajudar a fornecer alimentos e outros recursos bióticos e não bióticos à sociedade” e “ferramentas científicas e tecnológicas para a sustentabilidade do uso de água doce, estuários e ecossistemas marinhos”.

Já o Okeanos, criado em 2015, é um centro de investigação marinha ligado à Universidade dos Açores onde trabalham 31 cientistas. O seu foco de estudo tem sido o oceano Atlântico, incluindo ecossistemas marinhos de águas profundas, como fontes hidrotermais e montes submarinos, e fauna vulnerável, como tubarões, tartarugas, golfinhos, baleias e aves marinhas. Localizado na cidade da Horta, na ilha do Faial, o centro beneficia de instalações da Universidade dos Açores e do Instituto do Mar (Imar).

Fundado em 1991, o Imar, que tem como membros associados as universidades dos Açores e de Lisboa, Évora, Coimbra e Porto, propõe-se “contribuir para a produção de conhecimento, transmissão e difusão científica sobre os oceanos”, dispondo de várias embarcações e equipamentos de investigação científica.

Em Matosinhos fica o Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar), que integra 179 cientistas. A sua linha de investigação inclui a aquacultura sustentável e a segurança alimentar, a conservação dos recursos marinhos e novos produtos com aplicação na biorremediação, em cosméticos, medicamentos, comida, tintas e revestimentos.

Já o Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (Cesam), em Aveiro, conta com 214 investigadores e tem estudado o impacto da contaminação por plásticos, dos fenómenos meteorológicos extremos e das alterações climáticas.

Laboratório do Estado com sede em Lisboa, o Instituto Hidrográfico faz parte da Marinha e a sua origem remonta a 1960. Tem uma série de embarcações e equipamentos para o levantamento de dados hidrográficos, oceanográficos e geológicos.

Também laboratório do Estado, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), que faz previsões do estado do tempo e para a navegação e monitoriza a actividade sísmica e o clima, tem áreas de investigação dedicadas exclusivamente à geologia marinha, às pescas e ao mar.

A Universidade de Évora alberga o Laboratório de Ciências do Mar (Ciemar), que se tem debruçado em particular sobre a biologia e a poluição na região costeira do Alentejo, estudando a abundância de peixes, algas, crustáceos e moluscos.

No Algarve existem duas unidades de investigação: o Centro de Ciências do Mar (CCmar), onde trabalham 120 cientistas, e o Centro de Investigação Marinha e Ambiental (Cima), que tem 47 investigadores. Ambos estão associados à Universidade do Algarve. O CCmar procura estudar os efeitos do clima, da pesca, da poluição, das espécies invasoras e da alteração do habitat na biodiversidade e explora novos compostos para bioprodutos. O Cima foi fundado em 1998 e tem na sua estratégia o desenvolvimento de tecnologias para a exploração sustentável do lixo.