As irmãs que se reencontraram em Portugal e outras histórias de quem fugiu da guerra
Há cem dias, a Rússia invadiu a Ucrânia. Vita, Svitlana e os cinco filhos conseguiram fugir. Sasha estava em Portugal, mas voltou a Kiev para ir buscar as avós. Marina e Glip tiveram a “sorte” de sair antes de tudo começar. As três famílias deixaram quase tudo na Ucrânia. Em Portugal, estão a aprender a começar uma vida do zero sem saber se vão voltar ao seu país.
Vita Kalmutska viveu muitos anos perto de um aeroporto militar na Ucrânia, por isso, soube instantaneamente que os sons que a despertaram do sono a 24 de Fevereiro não eram de jactos, não eram de aviões, não eram de helicópteros. Eram barulhos “estranhos” que a deixaram paralisada. Alguns minutos depois, percebeu que eram bombas. Este som, que “nunca mais quer ouvir”, deu início ao período mais esgotante da vida desta ucraniana. “Tirou-me completamente o chão debaixo dos pés. Fui aos quartos das crianças. Estavam a dormir. Deviam ir para a escola naquele dia.”
Nas horas seguintes, os bombardeamentos junto ao Aeroporto Antonov International Airport, em Gostomel, não cessaram. Vita sabia que tinha de despertar daquele estado de choque e pensar no que fazer. Estava sozinha em casa com três filhos, o pai deles “não estava na fotografia”, sem carro ou carta, sem ninguém próximo a quem pedir ajuda.
Decidiu, às duas da manhã, hora que achou que seria mais segura, percorrer os sete quilómetros que a separavam da mãe, entre Bucha e Irpin.
A situação em Irpin não era animadora. Um pequeno supermercado perto da casa da mãe tinha sido atingido por um míssil. Resultado: muitas habitações ficaram sem água, electricidade, gás e Internet. Vita estava a tentar arranjar transporte para os quatro, sem sucesso. Não sabia se devia sair dali ou o que a “esperava na cidade seguinte”. “Não queria arriscar essa viagem com os meus filhos, mas estava desesperada, culpei-me por não ter saído mais cedo”, diz.
Umas horas depois, estava na rua a falar com um vizinho e um carro parou junto dos dois. O condutor, que depois soube ser um jovem voluntário, pediu direcções para uma cidade ali perto. Sem pensar, Vita pediu boleia para si e para os três filhos. Foi o “começo de um milagre, foi uma coincidência estar na rua naquele momento”. Dali seguiram para Kiev e, depois, para Lviv. Não se sentia segura nos países que fazem fronteira com a Ucrânia, por isso acabou por seguir para Budapeste, onde ficou alguns dias. Escreveu no Facebook que tinha fugido da guerra, que precisava de um país que a acolhesse e aos quatro filhos.
Foi de Portugal que recebeu boas novas.
Svitlana Kalmutska vivia em Kiev. Na madrugada de 24 de Fevereiro acordou por volta das 5h30, com um estrondo. “Abri a conversa de grupo do prédio [no WhatsApp] e estava toda a gente a perguntar o que se tinha passado. Achei que tinha sonhado. Muita gente estava com receio que aquilo fosse o começo da guerra. Depois, chegaram as notícias e também as sirenes. Não sabíamos o que fazer ou para onde ir”, recorda a mulher de 37 anos.
Svitlana, o marido e os dois filhos (Tim e Sevko) passaram as cinco noites seguintes na garagem do prédio de 20 andares onde viviam. Era o único abrigo possível, mas a família tinha medo que fosse atacado e que desabasse sobre as suas cabeças.
“O meu marido tinha de ficar na Ucrânia, mas decidi que não podia permitir que os meus filhos dormissem na garagem. Decidi que deveria tentar sair do país”, conta. De comboio em comboio, acabou por conseguir chegar a Praga, onde ficou várias semanas com algumas amigas e os filhos, que também estavam a sair da Ucrânia. “Passei esses dias em estado de choque e fui fazendo as coisas como os outros faziam. Não sabia como reagir.”
Até que o telemóvel tocou. Era Vita, a irmã mais nova. Não tinham notícias uma da outra há vários dias. Viviam a cerca de 50 quilómetros, quando a guerra começou, mas essa distância tinha aumentado nos últimos dias.
“Disse-me que estavam todos bem e que queria ir para Portugal. Quando perguntei porquê, disse que não sabia, mas queria. Não pensei duas vezes, disse que ia com ela.”
É num pequeno prédio caiado a branco, já com a tinta a descascar, que vivem agora as duas irmãs ucranianas. Abrem-nos a porta do terceiro andar com um sorriso nos lábios, sem esquecer o “bom dia” que tão depressa aprenderam.
Há muitos pares de sapatos, de vários tamanhos, espalhados junto à porta de entrada, um sinal de que uma família grande vive neste apartamento em Paranhos, no Porto. As estantes da sala luminosa ainda estão por preencher. Há alguns livros solitários, uns em português, outros em ucraniano, um jogo de estratégia, um violoncelo encostado a uma cadeira. Desde 18 de Março que as irmãs, que há muitos anos não viviam juntas, passaram a partilhar casa de novo. Dos corredores não se ouve barulho. Os miúdos estão todos na escola e as mães aproveitam o silêncio para fazer algumas coisas pela casa ou para trabalhar. “Este sítio tem uma energia especial. Quando cá chegámos, sentimos verdadeiramente que era uma segunda casa”, diz Vita, de 34 anos.
Depois do apelo no Facebook, foi contactada por vários portugueses que se ofereceram para ajudar a família de sete pessoas. Após o tão esperado reencontro, foram acolhidos em Cotelo, na vila de Castro Daire, numa casa que só era arrendada no Verão. “Conseguimos descansar no meio da natureza. As pessoas da vila foram incríveis. Trouxeram roupas, bolas de futebol para os miúdos e uma idosa até deu 10 euros aos mais novos.”
Mas essa estadia não seria de longa duração. As crianças precisavam de mais vida social. Nem Vita nem Svitlana têm carta ou carro e movimentarem-se numa vila onde os transportes são escassos também não seria fácil. “Começámos a procurar outras oportunidades e pensámos no Porto. É uma cidade grande, tem aeroporto e tínhamos cá uma amiga que nos deu o contacto de uma voluntária do Centro Comunitário S. Cirilo. Foi assim que conseguimos este belo apartamento sem pagar renda”, refere Vita, apontando na direcção da sala de jantar e de estar que se fundem numa longa divisão.
Vita justifica a escassa decoração da sala e do resto da casa facilmente. “Temos tudo o que precisamos. Adoramos a cerâmica portuguesa, mas também não queremos comprar nada que depois não possamos levar para a Ucrânia. Afinal, estamos a viver aqui como refugiados” diz, como se ainda se estivesse a habituar à ideia e a palavra nem soe bem para descrever a situação da família.
Borsch e bacalhau
Aos domingos, o jantar na casa das irmãs costuma ser uma coisa simples, mas hoje Vita fez borsch, uma sopa típica ucraniana em que o principal ingrediente é a beterraba. Pouco falta para as 20h e Zak, de nove anos, o filho mais novo de Vita, entra com os talheres na mão para os distribuir calmamente pela mesa redonda. A mãe já se está a encarregar de servir a sopa de cor avermelhada pelos pratos. “Hoje pus beterraba, cenoura, couve e cebola. Não costumo pôr carne, mas normalmente leva”, diz.
Faz questão de explicar que todas as crianças da casa gostam de acrescentar ou de retirar um ou outro ingrediente à sopa. Alguns não gostam de batata, outros gostam de adicionar frango, outros feijão. Já sentado à mesa, Yegor, o segundo filho mais velho de Vita, diz em ucraniano que “não é possível fazer borsch sem carne”, frase que é logo traduzida para inglês, enquanto o jovem desfia uma coxa de frango para pôr no seu prato, seguida de uma boa dose de pimenta. “Ele prefere comer assim”, diz a mãe.
As crianças vão chegando e sentam-se à mesa. Durante o jantar, falam, num ucraniano por vezes intercalado com o inglês, dos pratos típicos da Ucrânia e do regresso à escola no dia seguinte, mas maioritariamente concentram-se em comer a sopa quente.
“Bacalhau”, diz Tim, o filho mais novo de Svitlana, quando o tema da conversa muda para a comida tradicional portuguesa que já provaram. “Os colegas disseram-lhe o que era bacalhau, por isso é que ele já sabe dizer a palavra. Ainda não a aprendemos nas aulas de Português”, diz Sevko, o irmão mais velho, de 13 anos.
Vita conta que na Ucrânia era ilustradora e pintora, mas que em Portugal gostava de fazer algo relacionado com flores. E isso nota-se pela decoração da casa. No centro da mesa de jantar há um arranjo de flores brancas, em cima de um móvel há rosas vermelhas, em cima da lareira outro ramo. Está a tentar “organizar a vida da família” antes de começar a procurar trabalho, mas já se inscreveu no centro de emprego. “Ainda não encontraram algo para mim, não sei se conseguirão. Servir às mesas não seria um problema. Também vou procurando trabalhos online como freelancer, porque com três filhos precisava de algo flexível”, confessa.
Nas primeiras semanas não entendia o sistema de transportes, mas até isso já domina. Com o SEF não teve problemas, ainda falta concluir parte do processo, mas a página criada para os pedidos de protecção temporária ajudou muito. “Estamos a tratar das coisas da Segurança Social e a tentar perceber como funcionam os impostos. Está a consumir muito tempo e energia, mas é normal – é como começar uma vida do zero. Para mim, não é um problema, porque tenho facilidade com línguas, mas para as crianças tem sido complicado e acredito que para pessoas mais velhas que não falem inglês ainda seja mais.”
Para Kira, de 14 anos, a filha mais velha de Vita, tem sido difícil conhecer novas pessoas. Na Ucrânia não era uma adolescente sociável. A guerra e a mudança para um país tão longe e diferente do seu só fizeram com que se isolasse ainda mais. Muitas vezes não quer ir à escola ou sair do quarto para jantar. Vita diz que já está a ser acompanhada por um psicólogo, que tem ajudado. O mesmo se passa com Yegor, de 12 anos. “Está bem mais calmo do que estava nos primeiros dias, mas continua muito revoltado com tudo. Para ele, falar outra língua, mesmo o inglês, não é fácil.” O filho mais novo, Zak, de nove anos, é o mais sociável, apesar de muitas vezes também pedir para não ir à escola.
“Quero voltar à Ucrânia um dia, mas preciso de pensar no bem de todos. Não estou pronta para regressar, a não ser que digam que a guerra acabou. Não quero ouvir os sons dos mísseis”, diz.
“Ainda não conheci ninguém de quem não gostasse”
É sexta-feira. Chegamos a casa das irmãs ainda não são 7h30, mas a família já está toda acordada, no meio da correria das manhãs. Dali a nada é hora de levar os miúdos à escola, tarefa que hoje calhou a Svitlana. Tim, o mais novo dos cinco jovens, é o primeiro a estar pronto, muito antes dos outros.
Percorrer o caminho para a escola não demora mais do que 25 minutos. A primeira paragem é o Colégio da Paz, a dois minutos da Praça do Marquês de Pombal. É onde estudam os dois filhos de Svitlana, que se despedem da mãe antes de entrar. Já os três filhos de Vita frequentam o Externato das Escravas do Sagrado Coração de Jesus do Porto.
Foi através da Associação S. Cirilo que as irmãs conseguiram encontrar escolas grátis para os filhos. Já lhes foi prometido que no próximo ano lectivo também não pagarão. “Não temos nada a apontar, nada de que nos queixar. O que o vosso país nos deu é mais do que suficiente. Ainda não conheci ninguém de quem não gostasse”, diz Svitlana.
Neste momento, o salário de Svitlana Kalmutska e a “generosidade dos portugueses” com quem se têm cruzado têm mantido a família à tona. Conseguiu conservar o emprego que tinha na Ucrânia por trabalhar numa empresa austríaca como programadora informática. “Mas dentro da empresa sou freelancer, não tenho seguro de saúde ou outros direitos”, conta.
O marido ainda está em Kiev, mas não está no Exército. Perdeu o trabalho que tinha antes da guerra, mas “vai fazendo alguns biscates” e tentando ajudar a sogra, que continua na Ucrânia. “Sair do país onde nasceu não é uma hipótese para ela. Tem a companhia dos cães, gatos e da vizinha. Agora, fazem tudo juntas, inclusive cozinhar”, diz Svitlana.
Já a chegar à rua onde a família está a viver, diz que tenta não pensar no futuro e partilha a opinião da irmã: não voltarão ao país antes de a guerra terminar. “Espero e acredito que a guerra vai ser ganha, mas não sei se haverá segurança nos locais onde houve ataques e bombardeamentos. Estará tudo destruído. Não poderemos usar os lagos e as florestas.”
Svitlana não consegue evitar referir-se à vida na Ucrânia como a sua “vida anterior”. Durante alguns minutos de conversa fá-lo várias vezes. “O mais difícil para mim tem sido não estar na minha casa e não ter a certeza quando vou voltar ou de qual vai ser o meu futuro e o futuro do meu país. A dificuldade não é ficar em Portugal... é tudo o resto.”
Marina e Glip encontraram a Ucrânia no xadrez
São 3624 quilómetros que separam as duas moradas de Marina Snijynska e Glip Afendyk. A primeira em Kiev, a segunda no Porto. O casal nunca imaginou viver em Portugal (visitar claro, viver nunca), mas aqui estão. Junto ao fogão, Marina põe água a ferver para fazer chá preto. Na sala, o sofá está parcialmente escondido por uma bandeira ucraniana e na mesa há um tabuleiro de xadrez com as peças pretas e brancas muito bem arrumadas, um sinal de que há amantes do jogo nesta casa. Ou, como vamos descobrir daqui a pouco, um treinador de xadrez que faz deste desporto profissão.
Ao contrário de milhares de ucranianos, Marina e Glip tiveram a “sorte” de não ver a guerra com os próprios olhos. Dias antes da invasão russa, Marina recebeu uma chamada do namorado a pedir-lhe que fugisse para a Polónia. Os sinais de uma possível invasão começavam a ser demasiado difíceis de ignorar. Foram eles que fizeram com que Glip decidisse, alguns meses antes, mudar-se para Portugal, para estudar Filosofia. Portugal foi o primeiro país que visitaram juntos e ficaram com tão boas memórias que foi a primeira escolha. “É um país muito especial”, diz a jovem de 26 anos.
Marina só deveria chegar a Portugal mais tarde, no Verão, mas esse plano acabou por não se concretizar. Apesar do apelo do namorado, a jovem estava relutante e não queria pensar em sair da Ucrânia. “Tivemos uma discussão enorme, porque o Glip me comprou um bilhete de avião sem me dizer nada. Depois de muita insistência, acabei por ir. Percebi que nunca tinha estado na Polónia e que poderia trabalhar a partir de lá.”
O plano estava traçado, as malas e promessas feitas: alguma roupa de Inverno, os documentos e uma colecção de poesia ucraniana que sentiu que deveria levar. Ficaria duas semanas na Polónia e depois regressaria a Kiev. Mas o começo da guerra trocou-lhe as voltas. “Agora estou aqui”, diz, com alguma tristeza no olhar, enquanto vai bebericando o chá.
Todos os dias têm saudades de casa, mas sabem (e dizem) que são uns felizardos. “Não estamos numa situação má, como muitas pessoas que estão a chegar agora da Ucrânia. Espero que as ajudas estejam a chegar às pessoas que estão mesmo a precisar”, diz Marina.
Glip vive neste apartamento arrendado desde Setembro, quando chegou ao Porto para estudar Filosofia. Marina chegou no início de Março. Os outros dois quartos deste T3 são ocupados por uma espanhola e um irlandês, explica o casal, enquanto nos faz uma visita guiada pela sala e cozinha que não utilizarão durante muito mais tempo. Em breve devem mudar-se para Rio Tinto, para um apartamento da mãe de Glip que neste momento está arrendado a outro casal. Vão deixar de pagar renda e poderão ter uma vida mais desafogada.
Na Ucrânia, Marina trabalhava numa agência de comunicação, trabalho que agora faz à distância. “Vivo em dois fuso horários, o ucraniano e o português.”
Já Glip trabalhava como treinador de xadrez num clube em Kiev. “Tinha muitos alunos, crianças e não só. É um desporto muito popular na Ucrânia, não tanto como o futebol em Portugal”, assegura, entre risos. Não sabe se vai terminar o mestrado, porque o salário de Marina não chega para pagar a renda, as propinas, as aulas de Português e as restantes despesas do casal. Glip gostava de continuar a fazer o que fazia na Ucrânia, mas sabe que não será fácil.
Foi no xadrez que o casal, que não conhecia ninguém no Porto, encontrou finalmente um pedaço de casa. Desde Março que os serões de quinta-feira são quase exclusivamente dedicados ao desporto. Esta semana, como em todas as outras, Marina e Glip sobem as escadas íngremes do número 90 da Rua do Bonjardim e são recebidos no Sport Musas e Benfica por Luís Chambel, um dos coordenadores.
O ambiente na pequena sala do clube faz lembrar o de uma sala de aula. Uma mesa longa de madeira ocupa a quase totalidade do espaço e é rodeada por bancos e cadeiras. Em cima dela há já um tabuleiro de xadrez pronto a ser usado e nas paredes há quadros e posters que contam a história das Musas.
A comunicação é fácil e nem mesmo a barreira da língua parece ser um problema para quem tem em comum o amor pelo xadrez. Desde que o casal ucraniano integrou informalmente o clube que as noites começam com exercícios, ou não fosse Glip — que aqui desempenha a função de professor — treinador de xadrez. Hoje, por exemplo, Luís e Marina são desafiados a conseguir fazer xeque-mate em apenas duas jogadas.
“Torre para A5 e peão para F5”, sugere Luís. “Quando estamos todos, vamos propondo soluções. Cada um pensa numa jogada e vamos discutindo se funciona ou não”, diz Marina, sem tirar os olhos do tabuleiro de xadrez em ponto aumentado que está pendurado numa das paredes e que neste cenário de sala de aula faz o lugar de quadro. Glip vai folheando muitas vezes um livro já muito amarelado. É de onde tira os exercícios e as suas soluções. “Eles têm-nos ajudado muito, não somos nós que os temos ajudado. Sabem bastante mais de xadrez do que nós”, afiança Luís.
Há, entretanto, mais membros do clube a chegar e, pouco depois, está reunido o quórum para que seja possível realizar um minitorneio. Os petiscos de hoje — porque não há reunião do clube sem comida e bebida — são bolinhos de coco e um licor de morango. “É um clube de xadrez para adultos, porque jogamos com cerveja e outras bebidas alcoólicas ao lado”, diz Marina.
O casal ainda não joga oficialmente pelas Musas nas competições, mas é algo que tanto Luís como o casal querem muito. “Depois de as competições deste ano acabarem, vamos oficialmente juntar-nos às Musas. Gostamos mais do ambiente daqui, das pessoas, da comunicação, já fizemos amigos. É bom ter algo além do xadrez”, diz Glip.
De volta ao apartamento do casal, Marina diz que ainda está a tentar adaptar-se à vida num novo país. Tirou proveito de estar a viver numa cidade com muito sol e no litoral: começou a correr todas as semanas ao pé do rio ou mar. Usa com frequência (inclusive na tarde em que nos recebe em casa) uns brincos em forma de sardinha feitos em cortiça – mais portugueses é impossível. Mas nem por isso deixou de lado as tradições ucranianas – e faz questão de o provar. Levanta-se e vai em passo apressado até à cozinha. Regressa com três ovos de galinha revestidos com linhas de tricô azuis e amarelas, as cores do seu país.
Apesar de a “bondade dos portugueses” e de o “bom tempo” ajudarem, o casal tem sentido muitas dificuldades para enfrentar a burocracia de um sistema que “tem as suas falhas”. “Cada passo para concluir determinado processo é mesmo complicado. Neste momento, estamos a tentar obter o estatuto de residente não habitual (RNH) e a tentar entender como podemos fazer as contribuições normais. Queremos pagar os nossos impostos, ter os nossos direitos e tornar-nos uma parte activa da sociedade”, refere Glip.
É neste ponto que o casal se divide, é uma discussão que têm de forma recorrente: Glip já sabe que quer continuar em Portugal, mesmo depois de a guerra acabar. Marina tenta não pensar no futuro. “Não tenho tantas certezas como o Glip sobre ficar aqui para sempre. Quero ir para casa. Sei que o melhor para nós é ficar aqui, mas o meu coração diz-me outra coisa.”
Sasha regressou a Kiev para buscar as avós
“Eu sou Sacha. Sou ucraniana. Ele é Max, o meu marido. Ele é ‘data cientista’. Ele tem 28 anos. Eu gosto da Ucrânia e de Portugal.” Estão feitas as apresentações. Sasha Malinovska recebe-nos no apartamento airoso na zona das Antas, no Porto, num fim de tarde soalheiro do mês de Maio. O filho Theo, de dois anos, olha com muita admiração para os rostos que não conhece e, com vergonha, arrasta o pai para a varanda, onde estão grande parte dos seus brinquedos coloridos.
Nos últimos três meses, a família viveu em trânsito e só por um acaso veio parar a Portugal. Quando a guerra começou, estavam de férias nos Açores. Naquela noite de 24 de Fevereiro, Sasha acordou Max, de madrugada, para lhe dar a notícia. Nas noites seguintes poucas horas conseguiram dormir. “Temos muita sorte por não termos visto a guerra com os nossos próprios olhos, mas afectou-nos muito na mesma. Sentimo-nos culpados por não termos estado lá com a nossa família, por não termos tido de lidar com as coisas como eles tiveram”, recorda Sasha.
Dos Açores aterraram no Porto para ficarem num Airbnb durante duas semanas. Não sabiam o que fazer ou para onde ir. As notícias que lhes chegavam da Ucrânia eram tudo menos animadoras, mas também não podiam simplesmente decidir ficar a viver noutro país.
“Estávamos numa manifestação de apoio à Ucrânia e fomos apresentados ao Pedro e à Catarina”, recorda Sasha, de 29 anos. O casal português, residente na Foz, foi como uma bóia de salvação para a família. “Ofereceram-se para nos acolher em casa deles. Têm dois filhos pequenos da idade do nosso, uma vida pacífica e estável. Esta estadia ajudou-nos muito, não só financeiramente como também mentalmente.”
Acabaram por lá ficar mais de dois meses, mas Sasha não conseguia deixar de pensar no que (e em quem) deixou na Ucrânia. As suas duas avós continuavam em Kiev. Anastacia, de 79 anos, tem anemia aplástica e precisava de receber transfusões de sangue com frequência. Estava a ser tratada num hospital, mas quando a guerra começou deixaram de a chamar para as transfusões. As reservas disponíveis estavam a ser usadas para casos urgentes.
“Falávamos com ela todos os dias. Estava muito assustada. Não fala inglês ou qualquer outra língua, nunca tinha saído da Ucrânia e não estava nos seus planos sair”, explica Sasha. Mas quando se viu sozinha num apartamento, sem conseguir receber o tratamento médico de que precisava, concordou em viajar para Portugal, tal como o fez a outra avó, Tetiana, que aos 82 anos também vivia sozinha.
A neta só teria de descobrir uma forma de as idosas atravessarem a Europa no meio de uma guerra.
O grupo de portugueses que o casal conheceu na manifestação soube desta situação e foi logo organizada uma angariação de fundos para financiar a viagem. Sasha iria sozinha para Kiev para buscar as avós e, depois, encontrar-se-ia com dois portugueses em Cracóvia. Fariam a viagem de volta a Portugal todos juntos, numa carrinha. “Ficámos algum tempo na Polónia, para que a minha avó pudesse fazer algumas transfusões de sangue. Ainda conseguimos trazer uma amiga minha, que estava grávida, a filha de dois anos, e os meus dois gatos. Foi difícil para as minhas avós fazer uma viagem tão longa de carro, mas conseguimos chegar cá em segurança.”
A chegada das avós a Portugal, em meados de Março, fez com que o casal começasse a procurar um apartamento. Não podiam viver com Pedro e Catarina durante muito mais tempo, as avós e o bebé precisavam de “estabilidade”.
A conversa é muitas vezes interrompida pelos brados de Theo, que ora quer brincar na varanda com os brinquedos, ora perde o interesse e avança para a sua farra preferida: correr atrás dos dois gatos cor de laranja pela sala. Os bichos, assustados, correm a sete pés e vão esconder-se atrás do sofá. Os pais e as avós olham com fascínio para o bebé, que com pouco mais de dois anos já corre sem vacilar.
“Vivemos duas vidas neste momento. Estamos em Portugal, conhecemos pessoas, o que nos dá esperança de que a vida possa voltar ao normal um dia”, diz Sasha sempre de olhos no filho, que agora brinca com um camião pelo chão. “Mas depois temos o outro lado. Recebemos notícias todos os dias dos amigos e família. É difícil para mim fundir estas duas coisas. Ser capaz de viver a minha vida normalmente aqui e ao mesmo tempo conseguir apoiar quem ainda está na Ucrânia e manter alguma dessa identidade. Tenho muitas saudades de casa.”
Mesmo que quisesse, Sasha não se pode esconder e fechar os olhos ao que se passa no seu país. O irmão está no Exército. Ainda tem familiares em algumas cidades. E tem amigas que morreram. “Não é algo que vemos só nas notícias. Afecta-nos pessoalmente, mesmo que não tenhamos visto e estado lá”, diz.
Para o marido, Max, de 28 anos, a decisão mais difícil até agora foi saber se voltava à Ucrânia ou se ficava com a família. Não ter experiência militar e ser o único salário fixo da família acabou por pesar mais. Conseguiu manter o emprego de cientista de dados à distância, enquanto Sasha procura algo novo na área do design. Theo já está a frequentar uma creche perto de casa. O casal terá de pagar a mensalidade normal, mas ficaram isentos da taxa de inscrição, por exemplo.
Quem ainda não se conseguiu adaptar foram as duas avós, que entram a medo na sala do apartamento e se sentam muito juntas no sofá branco. Tetiana perdeu muito peso desde que chegou a Portugal e já teve duas pneumonias. Anastacia continua a ter de receber transfusões de sangue com frequência.
“Estão sempre tristes. Não conhecem a língua, não conseguem fazer amigos, não têm os vizinhos, com quem passava o tempo. Achamos que estão melhor aqui connosco do que sozinhas em Kiev, mas tem sido muito difícil para elas”, conta Sasha, olhando de forma carinhosa para as avós.
As idas constantes ao hospital não ajudaram. Antes de terem número de utente, algo que demorou mais de um mês, só conseguiam ser atendidas nas urgências. “O estado de saúde da minha avó Tetiana estava a deteriorar-se tanto que tivemos de ir cinco vezes às urgências. Numa das vezes que teve pneumonia ficou duas semanas no hospital. Felizmente conseguimos visitá-la nos cuidados intensivos” conta a jovem, acrescentando que as duas idosas continuam a ser acompanhadas no Hospital de Santo António, no Porto.
As avós ouvem o relato da neta com atenção. Sabem que estamos a falar delas, mas não entendem o que está a ser dito. Quando chega a hora de Anastacia responder a uma pergunta, mal a neta começa a fazer a tradução (com frases sempre começadas com babusya, avó em português), emociona-se logo. Fala sempre em ucraniano, mas é como se entendêssemos tudo o que está a dizer. Enquanto a avó fala, já a chorar, Sasha vai dizer “calma babusya, calma” e fazendo carícias no cabelo quase grisalho. Quando termina de falar, dizemos obrigada em ucraniano e os olhos de Anastacia iluminam-se, repete muitas vezes a palavra, ainda com lágrimas nos olhos, e manda beijos pelo ar.
“Está muito agradecida por estar aqui, pelos médicos, por tudo o que fizeram por ela. Sabe que com as condições que tinha na Ucrânia não ia conseguir viver bem, mas está muito triste por não estar no país dela. A vida aqui é boa, as pessoas são boas, o tempo é ameno, mas tem saudades de casa, toda a vida dela está lá. Não consegue pensar em mais nada”, traduz Sasha.
Esta angústia, tão palpável até para estranhos, faz com que Sasha não consiga justificar que as avós não voltem para Kiev assim que haja segurança e que o acesso aos cuidados de saúde seja facilitado. “Esperamos que haja paz na Ucrânia em breve. Se isso acontecer, conseguimos suportá-las financeiramente daqui, com a ajuda da minha mãe, que irá viver com elas.”
E Max, Sasha e Theo, que está neste momento a deliciar-se com uma taça de morangos? “Não sabemos, mas é muito provável ficarmos, também por causa do bebé. Queremos manter a nossa cidadania para podermos viajar para lá com frequência e pagar impostos na Ucrânia. Não querer viver lá a vida toda não quer dizer que não amemos o nosso país. Não temos casa lá, acho que vamos tentar construir uma vida aqui durante alguns anos.”
Para se recordar que o plano é não esquecer, Sasha tatuou, há poucas semanas, a bandeira da Ucrânia no antebraço. “Estava com saudades de casa e dos pedaços de identidade, somos um país muito unido. Queria ter isso no meu corpo para sempre.” As faixas azuis e amarelas são acompanhadas por duas folhas de castanheiro, árvore típica de Kiev. Por coincidência, há um castanheiro junto ao apartamento do casal. Nas primeiras semanas, quando os viu a crescer, Sasha sentiu-se melancólica. Não sabia quando ia voltar ao seu país, se ia voltar. Mas agora olha-os com satisfação, sente-se feliz por lhe ver as folhas renovadas e verdes. “A vida continua.”