Definir o clima como bem comum da humanidade para limpar a atmosfera
Proposta co-apresentada por portugueses na Conferência nas Nações Unidas Estocolmo+50 abre portas a compensar países que prestam serviços climáticos.
Duas organizações portuguesas participaram na elaboração de uma declaração que vai ser proposta nesta quinta-feira na Conferência Estocolmo+50 que pretende definir o clima como um bem comum da humanidade. “Hoje, para o direito, o clima não pertence a ninguém. Em termos jurídicos, o bem em si não existe, é apenas uma preocupação comum da humanidade”, explicou Paulo Magalhães, da organização Casa Comum da Humanidade, que é uma rede internacional com cientistas e juristas de todo o mundo, que dinamizou a elaboração desta declaração, que envolveu mais de 40 organizações ao longo de um ano.
“Pelo facto de o clima não ser de ninguém, se alguém investir de forma voluntária para limpar a atmosfera terrestre, que é de todos, fazer aquilo que se chama ‘emissões negativas’, ninguém paga por isso. Porque se está a fazer benefícios num bem que não pertence a ninguém, não existe organização para o gerir, não existe sistema de compensação”, disse ao PÚBLICO Paulo Magalhães. “No Acordo de Paris [de 2015], o que existe é uma preocupação, em que cada Estado se compromete a tentar fazer menos danos ao clima, um bem que não é de ninguém”, adiantou. O objectivo da declaração é mudar essa situação, redefinindo o clima como um bem comum da humanidade.
“Portugal foi inovador, porque na Lei do Clima portuguesa já tem o princípio de reconhecer o clima como património da humanidade, isto é, atribui-lhe o estatuto de um objecto jurídico intangível que existe dentro e fora da soberania”, diz Paulo Magalhães. “No geral, o direito continua a olhar para o planeta apenas como um território dividido entre Estados, em que os bens comuns são apenas as partes remanescentes, o mar alto, os fundos marinhos, a Antárctida, aquilo que sobra da divisão das soberanias”, explica.
“Ao definirmos um bem, se fizermos actos positivos, que lhe são benéficos, isso tem de ter correspondência em termos económicos, tem de ter visibilidade no PIB [produto interno bruto] dos países”, diz Paulo Magalhães. Abre-se assim a porta a compensar, por exemplo, países que têm florestas que são grandes sumidouros de carbono. “Porque estão a prestar esse serviço a toda a comunidade global”, afirma Paulo Magalhães.
“Os últimos relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) explicaram muito bem que sem retirarmos dióxido de carbono da atmosfera, não conseguimos cumprir os objectivos do Acordo de Paris, ou pelo menos que a temperatura não aumente mais de 1,5 graus”, expõe Paulo Magalhães. “A grande questão que se coloca é como é que vamos tirar dióxido de carbono da atmosfera, e quem paga isto?”, interroga.
“Se um país tiver uma floresta que constitui uma enorme mais-valia na regularização do clima, na captura de carbono, na biodiversidade, contribuindo, portanto, para o bom funcionamento do sistema terrestre, deve-se arranjar um mecanismo de reconhecimento e troca por esse tipo de serviços prestado ao mundo”, acrescenta Francisco Ferreira, dirigente da associação ambientalista Zero, que é co-signatária desta declaração.
“Um país que causa uma pegada ecológica significativa e que beneficia dos serviços de outro país deve contribuir no sentido proteger e salvaguardar esse bem comum, que está no outro país”, complementa Francisco Ferreira. “É acrescentar mais um modelo que permite recompensar os países que fornecem serviços essenciais para o funcionamento do sistema terrestre pelo esforço que fazem”, adianta.
Ninguém limpa o que não tem dono
“Qual é a grande vantagem disto? É criar um sistema em que cada um vai tentar minimizar aquilo que tem de pagar e vai tentar exponenciar os benefícios ao comum. Para pagar menos ou até, de preferência, receber. Fazer uma competição positiva, de alguma forma”, acrescenta Paulo Magalhães.
“Se não fizermos isto, não vamos conseguir limpar a atmosfera, porque ninguém vai andar a limpar algo que não é de ninguém, sem ter qualquer tipo de compensação”, defende Paulo Magalhães. “Assim cria-se uma economia de intangíveis naturais” – em que o bem intangível é o clima, correspondente a um bom funcionamento do sistema terrestre, que dá suporte à vida.
Este sistema implica uma gestão, que a declaração propõe que deve caber às Nações Unidas. “Não seria preciso criar um novo órgão, há um que deixou de ter funções, o Conselho de Tutela. Nasceu para gerir territórios que estavam numa situação jurídica indefinida, sob regime de tutela internacional, e neste momento todos os territórios têm a sua situação jurídica definida, deixou de ter propósito”, diz Paulo Magalhães. “A ideia é dar-lhe novas funções, para gerir estes bens comuns”, sugere.
Estas ideias partem do reconhecimento do “direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável”, reconhecido pelo Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas como um verdadeiro direito humano em Outubro de 2021. “Os outros pontos foram escolhidos na sequência deste, isto é, são o que é necessário para pôr em prática este direito ao ambiente sadio”, explica Paulo Magalhães.
Mas não espera resistências a estas propostas? “Há sempre os medos dos ataques à soberania. A grande questão é que o bem comum [o clima, reflexo do funcionamento do sistema terrestre] já existe, independentemente de o reconhecermos ou não. Mas ninguém tem soberania sobre a subida do nível dos mares, ou sobre as alterações climáticas, e para exercermos plenamente a soberania do território precisamos que o sistema comum funcione de forma equilibrada”, conclui.
A declaração será apresentada esta quinta-feira num evento paralelo da conferência Estocolmo+50: Um planeta saudável para a prosperidade de todos, num debate a que se pode assistir em directo na Internet e que se inicia às 10h30 (hora de Lisboa) e conta, além de Paulo Magalhães, com a presença de Maria Fernanda Espinosa (a ex-presidente da 73.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas), Karl Burkart (director da One Earth), Lígia Noronha (secretária-geral adjunta das Nações Unidas e chefe do gabinete de Nova Iorque no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), Izabella Teixeira (co-presidente do Painel Internacional de Recursos), Johan Rockström (director do Instituto Potsdam de Investigação dos Impacto Climático).