Foi a marca de automóveis que maior relutância revelou em abandonar o mercado russo, após a invasão da Ucrânia. Mas, no final de Março, a francesa Renault acabaria por se render às evidências e suspender os trabalhos na fábrica de Moscovo. Até que, esta segunda-feira, foi decidido encerrar a actividade da empresa na Rússia, com a Renault a ceder a sua participação de 68% na AvtoVAZ, mantendo uma opção de voltar a comprar no prazo de seis anos — relatos na imprensa russa indicam que os activos foram comprados pela autarquia da cidade por um rublo.
A Renault justifica que a “difícil decisão” era o caminho “responsável em relação aos nossos 45 mil empregados na Rússia”, ao mesmo tempo que o seu CEO, Luca de Meo, assinalou a intenção de manter a porta aberta para que a marca regresse a este importante mercado no futuro — em 2021, a Renault foi a quarta marca com maior volume de vendas e a terceira estrangeira (o emblema mais vendido foi o nacional Lada), atrás das sul-coreanas Kia e Hyundai. Já em Abril deste ano, em linha com as restantes marcas, a Renault observou uma quebra nas vendas de 84% (a marca que registou uma maior queda foi a Lexus, de 97%, enquanto a chinesa Exeed caminha em contraciclo: cresceu 277% nos primeiros três meses do ano).
Mas, para o presidente da Câmara de Moscovo esta parece ser uma oportunidade para cultivar alguma nostalgia, com o autarca a propor que se passem a montar na fábrica os históricos Moskvich, evitando que os números do desemprego disparem com a saída da Renault. “Não podemos permitir que os muitos milhares de trabalhadores fiquem sem trabalho”, começou por escrever Sergei Sobyanin no seu blogue pessoal, adiantando que decidiu “retomar a produção de automóveis de passageiros sob a histórica marca Moskvich”. E o político parece ter o plano bem delineado, declarando que irá “tentar manter a maior parte da equipa a trabalhar directamente na fábrica e os seus subcontratados”.
Já sobre a logística, Sobyanin informa que como parceiro tecnológico contará com a KAMAZ (veículos pesados) e que, “numa primeira fase, será organizada a produção de carros clássicos com motor de combustão interna”, adiantando que os carros eléctricos chegarão no futuro.
A intenção de Sergei Sobyanin foi motivo de escárnio nas redes sociais russas, onde os internautas se divertiram a partilhar memes a brincar com este regresso ao passado. E, para o vice-presidente do Sindicato Nacional do Automóvel, Anton Shaparin, citado pelo diário Komsomolskaia Pravda, o discurso de Sobyanin deveria ser mais prudente. “A construção de um carro novo leva anos e anos. Estudos de engenharia, testes, certificações”, enumera, considerando “a situação complicada”. E acrescenta: “Para a produção de automóveis, é necessária uma plataforma (uma base sobre a qual são montados diferentes automóveis de uma ou mesmo várias marcas), peças sobressalentes, motores. Não há nada disso agora. O último Moskvich, que saiu da linha de montagem em 2002, era essencialmente um veículo de 1976. E o seu motor estava em produção desde 1966. É inútil reanimar este modelo agora: não satisfaz as necessidades dos russos, nem os requisitos de segurança dos automóveis modernos.”
Porém, para Sergei Sobyanin, tudo tem solução e, por isso, anunciou já estar a trabalhar, em conjunto com a KAMAZ e com o Ministério da Indústria e Comércio da Rússia, “na localização da produção do número máximo de componentes automóveis” no país. Tudo para se cumprir a promessa de que “em 2022, será aberta uma nova página na história de Moskvich”.
Da fábrica, situada nas oficinas da antiga AZLK, em Volgogradsky Prospekt (Avenida de Volgogrado), Moscovo, saíam os crossovers Renault Duster e Kaptur, bem como o Nissan Terrano, mas a sua história remonta à década de 30 do século passado, quando aí eram construídos carros sob o chapéu da Ford.
Após a Segunda Guerra, iniciou-se a produção de um compacto utilitário, baptizado de Moskvich (Moscovita, quando traduzido) em homenagem à cidade que se preparava para celebrar os 800 anos da sua fundação em 1147. A estreia foi feita com o Moskvich-400, que assentava na plataforma do Opel Kadett K38 — os motivos dependem das teorias que chegam a falar em planos roubados de fábricas alemãs. O carro, o primeiro de passageiros produzido em massa na e para a URSS, estava equipado com um motor de 23cv, carroçaria monobloco e suspensão independente. No capítulo das excentricidades, incluía limpa pára-brisas, o que não era comum.
Quase dez anos depois, em 1954, uma actualização do Moskvich, designada de 401, trouxe grandes melhorias, tanto na caixa de velocidades como no motor. E prestava-se a servir diferentes necessidades, assumindo a forma de berlina, descapotável e carrinha.
O mais estiloso da gama, o 407, chegou em 1958, com detalhes que poderiam ser considerados premium para a época, nomeadamente inserções em cromado, relógio, sistema de aquecimento e até um rádio. Sob o capô, um potente motor de 45cv admitia uma velocidade máxima de 115 km/h, que conquistou a simpatia dos soviéticos e não só, tendo brilhado na Exposição Mundial do Automóvel em Bruxelas.
Durante o período de dissolução da URSS, a marca e o emblema Moskvich foram comprados pela alemã Volkswagen, que nunca chegou a produzir qualquer modelo com este nome — mas, caso Sergei Sobyanin consiga vingar nas suas intenções, haverá uma batalha legal por travar.