A silhueta do coração negro da Via Láctea
Três anos depois da primeira imagem de um buraco negro, a colaboração internacional Event Horizon Telescope, volta a presentear-nos com uma “fotografia” destas prisões de luz. O alvo foi o “nosso” buraco negro supermassivo que habita o coração da nossa casa Cósmica, a Via Láctea. A imagem confirma que está lá e que tem a massa que esperavamos. E aprendemos como está a rodar.
A 10 de Abril de 2019 a colaboração científica “Event Horizon Telescope” (EHT) espantou o mundo com a primeira imagem de um buraco negro. O desafio para obter esta fotografia foi imenso. Primeiro porque parece impossível “ver” aquilo que aprisiona a luz. Segundo porque, apesar de abundantes no Cosmos, mesmo os buracos negros mais próximos de nós estão muito longe e portanto têm um tamanho aparente muito pequeno no nosso céu.
A solução foi escolher como alvos das observações os buracos negros mais gigantescos conhecidos e, destes, os mais próximos. Adicionalmente, deveriam ter iluminação na sua vizinhança, de modo a definir a silhueta da região escura de onde nada escapa; ou seja, a silhueta da atração fatal da gravidade.
Felizmente, a Natureza é generosa. No centro das galáxias existe, tipicamente, um buraco negro gigante, supermassivo. O que parece maior no nosso céu é o que habita o centro da galáxia gigante M87, chamado M87*, à distância de 50 milhões de anos luz, e que foi por isso o primeiro alvo do EHT. É dele a imagem publicada em 2019, que se tornou um ícone, integrando até a coleção do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA).
O segundo maior buraco negro no nosso céu é o que habita o centro da nossa própria galáxia, chamado Sagitário A*, que está cerca de 1000 vezes mais próximo de nós do que M87*, mas é também cerca de 1000 vezes menor. Estes dois factores compensam, tornando comparavel o tamanho aparente destes dois buracos negros no nosso céu. Por isso, a imagem de M87* originou a promessa de uma imagem de Sagitário A*.
Mas o diabo, frequentemente, está nos detalhes. O buraco negro no centro da nossa galáxia oferece um desafio adicional. Estas imagens não são instantâneos, requerem tempo de exposição. A imagem de M87* divulgada em 2019 foi feita numa campanha de observação (em 2017) que demorou vários dias. Acontece que quanto menor for o buraco negro, mais rapidamente se altera significativamente o ambiente astrofísico em seu redor e que o ilumina, composto por matéria ionizada e acelerada. O leitor já fez uma fotografia de exposição longa de alguém que se mexeu? Pois bem, aqui o resultado é semelhante, e o problema é tanto mais notório quanto menor for o buraco negro, sendo pouco relevante para M87*, mas muito relevante para Sagitário A*. Foi, por isso, necessário fazer modelos teóricos de como o ambiente astrofísico evolui na vizinhança de Sagitário A* durante as exposições, que tipicamente demoraram entre 8 a 10 horas, obtendo no final uma espécie de média, para produzir uma imagem clara.
Por outro lado, Sagitário A* também oferece vantagens. Estando muito mais próximo de nós do que M87*, tem sido possível, ao longo de mais de duas décadas observar as trajetórias de estrelas individuais que orbitam este buraco negro. Estas observações, que estiveram na origem de metade do prémio Nobel da Física de 2020, deram-nos um conhecimento mais detalhado do “nosso” buraco negro supermassivo. Por exemplo conhecemos a sua massa (cerca de 4 milhões de massas solares) com melhor precisão do que a de M87*. A imagem agora revela está em perfeito acordo com este valor da massa. Isto permite-nos tirar conclusões mais precisas sobre como esta imagem confirma a teoria da relatividade geral de Einstein e as suas soluções teóricas que descrevem os buracos negros, dentro do erro observacional, que é da ordem de 10%. E mais uma vez, a teoria explica corretamente as observações.
E aprendemos mais uma característca do nosso buraco negro supermassivo. Tal como os planetas e as estrelas, os buracos negros podem rodar sobre um eixo. No caso de Sagitário A* desconheciamos se rodava e qual a orientação do eixo de rotação relativamente à Terra. A imagem hoje divulgada estabelece que o eixo de rotação do buraco negro se encontra, aproximadamente, alinhado com a direcção entre a Terra e o centro da galáxia.
Os buracos negros, que ganharam fundamentação teórica há mais de um século, foram encarados durante a primeira metade da sua história com enorme incompreensão e ceticismo; como uma construção meramente teórica sem realidade física. Esta perspetiva mudou no último meio século, impelida pela necessidade de explicar observações intrigantes, e alterou-se dramaticamente na última década em que entrámos na era de astrofísica de precisão dos buracos negros. Em 2015 “ouvimos” pela primeira uma colisão de buracos negros, através das suas ondas gravitacionais. Em 2019 “vimos” pela primeira vez um buraco negro. Em 2020, a conservadora academia Sueca atribuiu-lhes o Nobel da Física, oferecendo-lhes o seu selo de credibilidade. E hoje vimos a silhueta do coração negro da Via Láctea.
Os buracos negros representam a escuridão. Não deixa de ser irónico, por isso, que o presente e o futuro da sua ciência seja tão brilhante.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico