A seca é o desastre natural que mais mata
Convenção das Nações Unidas para Combater a Desertificação apela a acções para recuperar os solos e contrariar efeitos das alterações climáticas, para prevenir as secas hidrológicas, num novo relatório.
Embora as secas hidrológicas representem 15% dos desastres naturais que ocorreram no mundo entre 1970 e 2019, provocaram o maior número de vítimas desse tipo de desastres: 650 mil mortes, segundo um novo relatório da Convenção das Nações Unidas para Combater a Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês), que faz um apelo: a humanidade encontra-se numa “encruzilhada” para conseguir diminuir os impactos da seca, um fenómeno que se prevê que se vai tornar mais frequente e duradouro por causa das alterações climáticas.
Em 2022, mais de 2,3 mil milhões de pessoas não têm água suficiente no país ou região onde vivem para satisfazer as suas necessidades básicas, e quase 160 milhões de crianças estão expostas a secas graves e prolongadas. Mas, se nada for feito, em 2050, as secas hidrológicas pode afectar mais de três quartos da população mundial e estima-se que entre 4800 e 5700 milhões de pessoas viverão em áreas em que há escassez de água pelo menos durante um mês do ano. Estas previsões constam do relatório Seca em Números 2022, apresentado nesta quarta-feira para assinalar o Dia da Seca na 15ª Conferência das partes (COP 15) da UNCCD que decorre em Abidjan, na Costa do Marfim, até 20 de Maio.
“As secas são uma das maiores ameaças para o desenvolvimento sustentável, em especial nos países em desenvolvimento, mas cada vez mais também nos países desenvolvidos. O número e a duração das secas hidrológicas aumentaram 29% desde 2000, se comparamos com as duas décadas anteriores”, escreveu Ibrahim Thiaw, o secretário executivo da UNCCD.
“Os factos e os números deste relatório apontam todos na mesma direcção: uma trajectória ascendente da duração das secas e da gravidade dos seus impactos, que não só afecta as sociedades humanas como também os sistemas ecológicos dos quais depende a sobrevivência de toda a vida, incluindo a da nossa própria espécie”, afirmou Ibrahim Thiaw no prefácio.
África é o continente mais afectado – sofreu episódios de seca com mais frequência do que qualquer outro: 134 entre 2000 e 2019, dos quais 70 foram na África Oriental. Em todo o planeta, mais de 1400 milhões de pessoas foram afectadas pela seca hidrológica no período de 2000 a 2019 – está em segundo lugar na lista dos desastres naturais que mais pessoas afectam, a seguir às inundações. Hoje em dia, 15% do território e 17% da população da União Europeia está afectado pela seca hidrológica.
Todo o território de Portugal continental se manteve em situação de seca durante Abril. No último dia do mês passado, 8,5% do território estava em seca fraca e 4,3% em seca severa. Não se registava seca extrema.
“Nenhum país é imune à seca”, frisou Thiaw, apelando a que se lancem acções capazes de a prevenir, para além de a gerir. “Estamos numa encruzilhada. Temos de agir para encontrar soluções em vez de continuar com acções destrutivas, acreditando que mudanças superficiais podem sarar falhanços sistémicos”, declarou. É necessária uma mudança de paradigma: em vez de reagirmos a crises (secas), devemos ter abordagens de gestão do risco, que garantam “coordenação, comunicação e cooperação, e sejam sustentadas por financiamento suficiente e vontade política”, sublinhou Thiaw.
O relatório apresenta exemplos de algumas medidas de gestão do risco que estão a ser aplicadas pelo mundo fora. O projecto ITIKI, que é um sistema de alerta precoce para a seca que integra conhecimentos das populações indígenas e previsões de seca para ajudar pequenos agricultores a tomar decisões mais informadas, por exemplo onde e quando plantar que colheitas, e que está a ser testado em Moçambique, no Quénia e na África do Sul. Tem uma exactidão de 70 a 98%, avaliada ao longo de quatro anos, diz o documento.
O restauro dos solos, para garantir a sua fertilidade, é também um dos passos mais importantes. “Devemos construir e reconstruir as nossas paisagens melhor, imitando a natureza sempre que possível e criando sistemas ecológicos funcionais”, lê-se no relatório. Regeneração das florestas, prática de agricultura de conservação (sementeira directa), combinação de florestas com produção de energia, regeneração de pastos e controlo da erosão são algumas medidas para o restauro dos solos que, além de eficazes, têm um retorno económico positivo, sugere.
São dados alguns exemplos de passos que podem ser seguidos. Um deles é a cobertura dos solos com musgos, que têm uma enorme capacidade de absorção da água – até 1400% da sua massa seca. Podem ajudar à recuperação dos solos e facilitar o estabelecimento de outras plantas em ambientes degradados.
A seca tem consequências graves para a economia dos países afectados. Em Angola, por exemplo, mais de 40% do gado, cuja criação é um meio de subsistência para parte significativa da população, representando 31,4% do Produto Interno Bruto (PIB) agrícola, está exposto à seca. Essa proporção deve crescer para 70%, segundo as projecções existentes para a evolução das condições climáticas.
À medida que o aquecimento global aumentar e o clima se alterar, as secas devem tornar-se mais frequentes, em muitas regiões vulneráveis do planeta, em especial zonas com acelerado crescimento populacional. Nas próximas décadas, 129 países devem ter um aumento do risco de sofrer secas só por causa das alterações climáticas, diz o relatório. O Banco Mundial prevê que 216 milhões de pessoas possam ser forçadas a migrar até 2050, em grande parte devido à seca, escassez de água e factores relacionados, como reduzida segurança alimentar, porque a seca reduz a produção agrícola.
Se o aquecimento global chegar a mais três graus Celsius em 2100 (temperatura média do planeta) face à era pré-industrial, como se prevê, as perdas devido à seca podem ser cinco vezes maiores do que são hoje, com as regiões da Europa mediterrânica e atlântica a sofrer o pior impacto. Para ter uma ideia, entre 1998 e 2017, em termos globais, a seca provocou perdas económicas no valor de 124 mil milhões dólares (117,5 mil milhões de euros).
As secas representam perdas também em termos de biodiversidade: a percentagem de plantas afectadas mais do que duplicou nos últimos 40 anos, com cerca de 12 milhões de hectares perdidos todos os anos para a seca e desertificação. Uma enorme seca na Austrália contribuiu para os mega-incêndios de 2019-2020 que produziram a maior perda de habitats de espécies ameaçadas da história pós-colonial, diz o relatório: cerca de três mil milhões de animais foram mortos ou deslocados por causa dos incêndios florestais.
Os incêndios são, precisamente, outra consequência das secas: 84% de todos os ecossistemas terrestres estão ameaçados pela sua intensificação. Durante as primeiras duas décadas do século XXI, houve três episódios alargados de seca na Amazónia, que desencadearam enormes incêndios florestais. A seca está a tornar-se mais frequente na Amazónia devido à combinação dos usos da terra e das alterações climáticas. Se a desflorestação continuar ao ritmo de hoje, 16% da floresta amazónica vai arder até 2050.