Sinn Féin anuncia “nova era” após vitória “sísmica” nas eleições na Irlanda do Norte

Partido nacionalista vence eleições para a Assembleia, pela primeira vez em 101 anos, e admite referendo à reunificação com a República da Irlanda “em cinco anos”. DUP deve travar entrada imediata em funções do novo governo.

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Michelle O'Neill, líder do Sinn Féin na Irlanda do Norte, e candidata a primeira-ministra JASON CAIRNDUFF/Reuters

Não seria preciso dizê-lo. Bastaria olhar para a História e para os resultados eleitorais dos últimos 101 anos na Irlanda do Norte. Mas Michelle O’Neill, vice-presidente do Sinn Féin e candidata a primeira-ministra no governo de partilha de poder do território que faz parte do Reino Unido, não deixou de anunciar: “Hoje começa uma nova era”.

Quando O’Neill proferiu estas palavras, neste sábado, na localidade de Magherafelt, os votos das eleições de quinta-feira ainda não tinham sido todos contabilizados, nem o seu partido tinha assegurado, matematicamente, o estatuto de força política com maior representação entre os 90 deputados da Assembleia da Irlanda do Norte.

Mas o ambiente entre as fileiras do partido nacionalista de esquerda era todo de sorrisos. E a confirmação, na véspera, de que tinha conquistado o voto popular entre as primeiras escolhas dos eleitores, com 29%, apontava para o cenário que se veio a verificar mais tarde: pela primeira vez desde a partição da Irlanda, em 1921, o antigo braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA) ganhou o direito de nomear o primeiro-ministro.

Contabilizados os votos “transferidos” para outros candidatos – cumprindo as regras do sistema de voto único transferível norte-irlandês, que procura que os votos em candidatos já eleitos não sejam “desperdiçados”, indo para outros, conforme as preferências dos eleitores –, e numa altura em que só falta oficializar dois lugares, o Sinn Féin alcançou o “número mágico” dos 27 deputados na Assembleia, numa eleição descrita por diversos media e comentadores britânicos e norte-irlandeses como “sísmica”.

Em segundo lugar ficaram os ultraconservadores do Partido Unionista Democrático (DUP), que, depois de terem vencido as eleições de 2003, de 2007, de 2011, de 2016 e de 2017, obtiveram 21,3% do voto popular e elegeram pelo menos 24 deputados.

Outro dos destaques da eleição vai para o Partido da Aliança. Centrista e não-alinhado com o nacionalismo ou o unionismo, o partido de Naomi Long duplicou a sua representação parlamentar, elegendo pelo menos 17 deputados.

Partido Unionista do Ulster (UUP), Partido Social Democrata e Trabalhista (SDLP), Voz Unionista Tradicional (TUV) e Povo Antes do Lucro (PBP) também elegeram representantes na Assembleia de Stormont.

O passado e o presente

“O dia de hoje representa um momento de mudança muito significativo. É um momento definidor para a nossa política e para o nosso povo”, prosseguiu O’Neill. “Independentemente das suas origens religiosas, políticas ou sociais, o meu compromisso é fazer com que a política funcione. O meu compromisso é trabalhar através da cooperação, ao invés da divisão”.

Em qualquer eleição, independentemente do país, o apelo ao diálogo e à união faz tradicionalmente parte do discurso dos vencedores. Mas, no caso da Irlanda do Norte, a referência é particularmente importante.

Trata-se de um território que foi palco de uma violenta guerra civil – os Troubles –, que tirou a vida a mais de 3500 pessoas, disputada por católicos republicanos e protestantes unionistas, entre a década de 1960 e o final dos anos 1990, e cujo sistema político, consagrado no Acordo de Sexta-Feira Santa (1998), foi desenhado para integrar as duas “comunidades” no poder executivo.

A natureza conciliadora do acordo de paz deverá, no entanto, ser utilizada por uma das partes para travar a entrada em funções do governo que sair destas eleições, pelo que a vitória do Sinn Féin poderá ficar-se apenas pelo simbolismo – o que, ainda assim, não é coisa pouca.

Depois de ter escondido a mão durante grande parte da campanha eleitoral, sobre se iria viabilizar ou não um governo liderado pelos nacionalistas, o DUP deu a entender, este sábado, que o partido só vai nomear o vice-primeiro-ministro – a que tem direito, por ter sido a força política unionista mais votada – quando o “problema do protocolo” for “resolvido”.

O referido (e famoso) protocolo faz parte do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia, define o sistema regulatório aplicável à entrada de produtos na Irlanda do Norte vindos de Inglaterra, do País de Gales e da Escócia e cria uma espécie de “fronteira aduaneira” ao longo do Mar da Irlanda.

Para o DUP, esta solução é inaceitável e põe em causa a integridade territorial do Reino Unido. O partido exige, por isso, que o Governo britânico, liderado por Boris Johnson, rasgue o protocolo. E defende que essa exigência é suficientemente importante para justificar que a Irlanda do Norte tenha um governo de gestão durante pelo menos seis meses.

“A nossa política deixou de ser sobre maiorias para governar. É sobre consenso e isso significa que não se pode ignorar a comunidade unionista”, afirmou Jeffrey Donaldson, líder do DUP. “E a comunidade unionista votou decisivamente para eleger candidatos à Assembleia que se opõem ao protocolo. Por isso, isto precisa de ser resolvido”.

Através de Brandon Lewis, ministro para a Irlanda do Norte, Downing Street já reagiu ao desfecho das eleições, pedindo um governo e um parlamento em funções “o mais cedo possível”.

“União é o melhor plano”

Mary Lou McDonald, presidente do Sinn Féin e líder da oposição no Parlamento da República da Irlanda, pediu, porém, ao unionismo para “não ter medo”, dizendo que, face à crise económica pós-pandémica, a classe política norte-irlandesa tem “uma obrigação colectiva para pôr o governo a andar e a funcionar”.

McDonald é o rosto da reorientação programática do Sinn Féin, que nos últimos anos tem focado a sua mensagem em questões relacionadas com a habitação, a saúde, o emprego e a educação.

Apesar de lhe dar menos tempo de antena, o objectivo da reunificação política da ilha não deixou, ainda assim, de ser fundamental para o partido – e um factor de desconfiança para o DUP e o unionismo em geral.

Na sexta-feira, a líder do Sinn Féin deu conta disso mesmo, dizendo que há condições para organizar um referendo sobre o tema em ambos os lados da fronteira “dentro de um período de cinco anos”.

“Acreditamos que a união da Irlanda é o melhor plano e a maior oportunidade para todos os que vivem nesta ilha. A partição tem sido desastrosa, resultou em conflito e em sofrimento sem fim. Mas isto tem de ser feito de forma planeada, ordenada, democrática e totalmente pacífica”, disse McDonald.

Nos termos do Northern Ireland Act, a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido e “não deixará de fazer sem o consenso da maioria da população da Irlanda do Norte numa eleição”.

Uma sondagem realizada pela BBC em Abril do de 2021, no âmbito dos preparativos para o centenário da criação da Irlanda do Norte, em Maio, mostrava que, também à boleia do “Brexit”, 51% dos norte-irlandeses e 54% dos irlandeses acreditam que o território vai abandonar o Reino Unido nos próximos 25 anos.

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