Covid-19: há 20 vezes mais casos do que no ano passado. Doença está “menos perigosa”, mas pode haver “ressurgimento”
Número absoluto de mortes por covid-19 registado em Abril deste ano no país é quase cinco vezes superior ao valor reportado no mesmo mês de 2021, mas letalidade da doença é agora bastante inferior. Porém, Manuel Carmo Gomes destaca uma situação “preocupante na África do Sul” causada por duas subvariantes da Ómicron e alerta que “Portugal — como, aliás, toda a Europa — não está livre de voltar a ter um grande ressurgimento”.
O número de casos diários de covid-19 registados em Portugal em Abril deste ano é cerca de 20 vezes superior comparativamente com o valor registado no mesmo mês do ano passado — em Abril de 2021, o número de casos por dia, em média, “rondava os 500 e, neste momento, está entre 9000 e 10.000”, começa por explicar ao PÚBLICO o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, citando dados oficiais. Ao mesmo tempo, cerca de 25% dos resultados são positivos por cada 100 testes realizados à covid-19, com o especialista a destacar que, embora os testes agora só se façam quando há uma suspeita de infecção, este é um valor de positividade “altíssimo”.
É também por isso que o número, em termos absolutos, de mortes por covid-19 registado em Abril deste ano no país é quase cinco vezes superior ao valor reportado no mesmo mês de 2021 — em Abril do ano passado, o país registou 117 mortes causadas pela doença, um valor que se aproxima agora de 500. Porém, a letalidade — o quociente entre o número de óbitos e de casos —, que está relacionada com o “perigo que a doença representa em termos de risco de morrer”, é actualmente “cerca de cinco vezes inferior, comparativamente a Abril de 2021”. Na altura, a letalidade da covid-19 “era aproximadamente 1% e agora é cerca de 0,2%”, destaca Manuel Carmo Gomes.
O epidemiologista explica ainda que, “em Abril de 2021, os maiores de 80 anos representavam apenas cerca de 50%” dos óbitos por covid-19, enquanto o grupo etário dos 70 aos 79 anos registava 33%. “Neste momento, aproximadamente 75% dos óbitos causados pela doença são em pessoas com mais de 80 anos” e a faixa etária dos 70 aos 79 anos soma apenas 17% das mortes. Já o grupo dos 60 aos 69 anos registava, em Abril de 2021, 15% das mortes por covid-19 e actualmente contabiliza apenas 5%.
“A doença é agora muito menos perigosa em termos de risco de morrer. Além disso, agora quem morre são predominantemente as pessoas com mais de 80 anos”, destaca.
Confinamentos, vacinas e Ómicron
Há vários factores que contribuem para esta evolução, com o especialista a notar que, “em Abril de 2021, tínhamos saído de um grande confinamento, estávamos com poucas centenas de casos por dia e agora estamos com milhares”.
Actualmente, “uma grande maioria” das pessoas tem também o esquema vacinal completo, ao contrário do que se verificava no ano passado, e a “variante Ómicron [dominante, neste momento, em Portugal] não aparenta ter a patogenicidade que tinha a variante de Abril de 2021, a Alfa”.
Portugal com 17 a 19 óbitos por dia por covid-19
O facto de o país registar, neste momento, em média, entre 17 e 19 óbitos por dia causados pela doença não é, por isso, “um sinal de perigo, mas apenas uma situação inerente a um vírus que não é muito patogénico, mas que está a circular intensamente na nossa população”. Além disso, há pessoas mais frágeis, nomeadamente os “mais idosos, que são pessoas que têm muitas outras co-morbilidades e que quando são infectados, apesar de estarem vacinados, podem descompensar e entrar em desequilíbrio”, podendo uma infecção “ser fatal”.
Referindo-se ao referencial de 20 óbitos por covid-19 por milhão de habitantes, numa média a 14 dias, estabelecido pelo Governo, Manuel Carmo Gomes explica que, segundo dados que remontam a 1 de Maio, este índice ronda os 24,1 e apresenta “uma tendência descendente desde dia 19 de Abril”, data em que o valor era de 29.
“Não tenho a certeza de se esta descida se vai prolongar desta maneira nas próximas semanas. Se isso acontecer — e é um grande ‘se’ —, por volta de meados de Maio deveremos estar a atingir os 20 óbitos acumulados a 14 dias” por milhão de habitantes, explica, embora alerte que a evolução deste indicador pode variar bastante.
Quinta onda de covid-19 na África do Sul pode ser sinal de alerta
Não obstante, Carmo Gomes destaca que se verifica “uma situação um bocadinho preocupante na África do Sul, o país que deu o primeiro alerta para a Ómicron e que, neste momento, está a entrar no Outono/Inverno e numa quinta onda de covid-19 causada por duas subvariantes da Ómicron, a BA.5 e a BA.4, que estão a conseguir fugir aos anticorpos originados por uma infecção com a BA.1 e a BA.2” — duas das subvariantes iniciais da Ómicron. Hoje em dia, a BA.2 é dominante em Portugal, embora o especialista garanta que foram já detectados casos em território nacional de BA.4 e BA.5.
O epidemiologista alerta que “as pessoas que foram infectadas com a BA.1, ao fim de dois ou três meses, podem ser infectadas com a BA.5 e, portanto, Portugal — como, aliás, toda a Europa — não está livre de voltar a ter um grande ressurgimento” da doença causado por esta ou outra subvariante.
Ao contrário do que acontece na África do Sul, Portugal aproxima-se do Verão, o que poderá ser uma vantagem. Além de as pessoas passarem mais tempo ao ar livre, “a própria radiação ultravioleta do sol mata o vírus quando ele está em suspensão no ar”.
Outra “boa notícia” é que “a BA.4 e a BA.5 não são mais patogénicas do que as primeiras subvariantes da Ómicron”. Segundo o especialista, o vírus SARS-CoV-2 está “a comportar-se como normalmente se comportam os coronavírus”. “Os coronavírus que infectam praticamente todos os mamíferos, normalmente, depois de uma fase de grande pandemia — que nós já vivemos —, começam a evoluir não necessariamente no sentido de causar doença mais grave, mas no sentido de fugir ao nosso sistema imunitário”, diz.
“No entanto, é evidente que se entrarmos numa situação em que temos 20 mil ou 60 mil casos por dia, como já aconteceu com a Ómicron, isso tem algum impacto hospitalar e temos de estar preparados”, alerta.
Carmo Gomes explica que “o vírus está cá e, portanto, evidentemente há alguma preocupação relativamente ao próximo Outono/Inverno”, destacando um parecer recente da Comissão Técnica de Vacinação que aponta para uma recomendação da “vacinação dos mais idosos pouco antes” desse período, “idealmente de forma associada à vacinação da gripe”.
A covid-19 “vai ficar entre nós durante anos e, talvez, algumas décadas” e “o vírus continua a evoluir”, pelo que o futuro passará por “um processo dinâmico de adaptação mútua”. “Resta-nos esperar que estas variantes que vão sucessivamente aparecendo não sejam muito patogénicas” e que “o número de casos por dia pelo menos não aumente”.