Produzir insectos para alimentos: “É tudo 100% aproveitado”
Em Portugal, a produção e transformação em massa de insectos para a alimentação humana está a dar os primeiros passos. Esta é uma indústria em desenvolvimento sob o signo da sustentabilidade.
A prova de conceito está por todo o lado na natureza, numa metodologia aperfeiçoada ao longo de centenas de milhões de anos: os insectos eclodem dos ovos, crescem, passam por diferentes formas até atingirem um corpo adulto, reproduzem-se e colocam mais ovos, fechando o ciclo. No caso da larva-da-farinha (Tenebrium molitor), parte desta sequência pode ser observada em quatro tabuleiros, nas instalações da Thunder Foods, em Santarém. Há um movimento silencioso no farelo que preenche o tabuleiro da direita, onde as centenas de larvas mais crescidas estão num movimento contínuo e hipnotizante.
Ao contrário do que acontece na natureza, a maioria daquelas larvas não vai ter a oportunidade de se metamorfosear em coleópteros adultos. Estão perto do momento de abate para serem transformadas em farinha. A Thunder Foods quer vender a farinha destes insectos para alimentos de consumo humano e faz parte de uma nova indústria alimentar que, tanto em Portugal como na Europa, tem um potencial de crescimento apoiado nas bandeiras da economia circular, da independência alimentar e da sustentabilidade.
Sabia que...
...há 2111 espécies de insectos que servem de alimento em 140 países.
Mas, como em todas as indústrias nascentes, é preciso partir pedra.
“O nosso grande desafio, o que estamos a abordar com maior empenho, é a industrialização do processo”, afirma Diogo Palha, economista e fundador da Thunder Foods. “É um desafio de engenharia.”
Peneirar insectos
A Thunder Foods nasceu a partir da Entogreen, que produz insectos para a alimentação animal. Por enquanto, as duas partilham o mesmo espaço. A empresa já aperfeiçoou a manutenção do ciclo de vida da larva-da-farinha. Num contentor pré-fabricado, fora das instalações, estão centenas de tabuleiros empilhados em filas que deixam apenas livre um corredor interno. Dentro dos tabuleiros, milhares de indivíduos de Tenebrium molitor vão crescendo nas suas várias fases, submetidos a uma humidade e uma temperatura controladas.
“Desde que os ovos eclodem até à retirada das larvas [para abate] são três meses”, explica Inês Vieira, médica-veterinária, que está a estagiar na empresa. “Três meses a serem peneiradas e processadas. Se se espera um pouco mais, transformam-se em pupas.” Nesse caso, já não podem ser aproveitadas para produzir a farinha.
Há vários momentos de peneiração. “Os ovos são muito pequeninos. De duas em duas semanas peneiramos os adultos e metemo-los numa nova caixa. As larvas ficam no farelo”, descreve Inês Vieira. Estes e outros passos ao longo do ciclo, que agora são feitos manualmente, terão de se tornar mecanizados no processo industrial.
“Um dos motivos que faz com que este produto hoje seja tão caro é, por um lado, a sua escassez, por outro, o custo que tem de produção”, explica Diogo Palha. “Feito de forma manual, isto é um processo muito demorado que carece de muita mão-de-obra”, acrescenta.
Além do farelo, as larvas de Tenebrium molitor alimentam-se de batata, que serve como fonte de água. À medida que crescem, elas vão trocando de pele. Juntamente com os dejectos, estes restos são também filtrados e usados para se produzir um fertilizante natural que, nutrindo a terra agrícola, ajuda na economia circular.
Sabia que...
...o cultivo de insectos poderá ser aplicado noutro tipo de indústrias que não a alimentar, como a produção de biocombustível, de têxteis, cosméticos e fármacos. Há ainda experiências científicas que estão a testar se os insectos poderão servir para a bio-remediação de contaminantes ambientais.
Antes de se transformarem em pupas, os insectos são mortos através de um choque térmico e são desidratados. De seguida, trituram-se para a produção de farinha. Daqui sai um óleo alimentar que pode ser vendido. “Não há desperdícios, é tudo 100% aproveitado”, refere o empresário.
Neste momento, a empresa não vende o que produz, está centrada no método de desenvolvimento das larvas, na mecanização do processo e na ligação com os seus parceiros. A Thunder Foods tem acordos com a Nestlé e a Auchan para vender futuramente a farinha, e estão a ser feitos testes para a produção de “pão, panquecas, focaccia, batidos”, adianta.
“No Ocidente, [os insectos] provocam um bocadinho de nojo às pessoas”, admite Diogo Palha. “O que é uma falsa questão, porque isto não é para comer assim”, diz, referindo-se às larvas inteiras. “Isto é para fazer farinha, que é incorporada em quantidades relativamente baixas no produto. Podemos comer uma barra com quatro a 7% deste tipo de proteína, torna-se uma barra altamente proteica e ninguém sente que está a comer insectos.”
Segundo Diogo Palha, é possível que existam outros fabricantes, no mercado europeu, que já tenham alcançado um processo automático no cultivo das larvas-da-farinha, mas ainda é segredo industrial. “Estamos todos a desenvolver. Não é um processo normal de produzir proteína animal em que todos sabem como funciona”, constata Diogo Palha, como acontece na pecuária tradicional.
Novo mundo
Os insectos caem naquilo que se chama de “novo alimento” para os humanos, segundo os termos da União Europeia. É uma concepção ocidental. Estes animais são comidos tradicionalmente em muitas regiões do mundo: há 2111 espécies de insectos que servem de alimento em 140 países. Destas, 92% são apanhadas na natureza, 6% são semidomesticadas e 2% são cultivadas, de acordo com um relatório de 2021 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, sigla em inglês).
Em 2013, a FAO lançou a discussão sobre os insectos enquanto alimento humano ao publicar um primeiro relatório que se tornou numa grande referência para este tema. Tendo em conta que a população humana irá atingir os 9700 milhões de pessoas em 2050, de acordo com as estimativas das Nações Unidas (ONU), a perspectiva deste aumento populacional e dos seus impactos nos recursos finitos do planeta é um dos principais argumentos para a procura de novos alimentos, onde se incluem os insectos.
A investigação feita sobre insectos foi revelando algumas dimensões da sua sustentabilidade enquanto alimento produzido à escala industrial, avança a FAO. Para produzir um quilo destes animais, são necessários apenas 2,1 quilos de ração. Esta proporção vai subindo na pecuária tradicional: 4,5 quilos de ração para os frangos, 9,1 quilos para os suínos e 25 quilos para os bovinos. A pegada de água por grama de proteína também segue a mesma tendência: é 23 litros por grama de proteína de larva-da-farinha, 34 litros por grama de proteína de galinha, 57 litros por grama de proteína de suínos e 112 litros por grama de proteína de bovinos.
A nível do impacto do aquecimento global, a produção de um quilo de proteína de larva-da-farinha emite 14 quilos de dióxido de carbono equivalente (CO2 equivalente). No caso de um quilo de galinha, esse valor sobe para 19 quilos de CO2 equivalente, nos suínos para 27 quilos e nos bovinos para 88 quilos.
Os insectos “podem ser produzidos o ano todo, a maioria do seu corpo é alimento, têm uma taxa alta de fecundidade e crescimento, e convertem de uma forma eficiente o substrato [de que se alimentam] em massa corporal”, realça ainda o relatório da FAO publicado em 2021.
De 2013 para cá, o tema foi passando da periferia para o centro das discussões sobre alimentação, motivando também uma mudança na legislação. Hoje, já é possível comprar barras energéticas e outros alimentos à base de insectos, cuja matéria-prima foi produzida fora de Portugal, em algumas lojas e mercados do país. “Os insectos estão a surgir rapidamente como um grupo viável de alimentação humana e animal, com a produção em massa a ganhar popularidade a nível global”, avança o documento. O panorama nacional reflecte esta tendência.
Oportunidade de mercado
Em Maio de 2021, a União Europeia aprovou a farinha de Tenebrium molitor como primeiro alimento à base de insectos para a alimentação humana. Depois, foram aprovadas a produção de grilo-doméstico (Acheta domesticus) e de gafanhoto-migrador (Locusta migratoria). Neste momento, a Direcção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) permite a produção e comercialização de cinco espécies de insectos ao abrigo de medidas transitórias do regulamento da União Europeia. Além da larva-da-farinha, do grilo-doméstico e do gafanhoto-migrador, as outras duas espécies contempladas pela DGAV são o Alphitobius diaperinus (uma espécie de escaravelho) e a abelha-europeia (Apis mellifera).
Esta “é uma oportunidade de mercado, de produzir novos produtos aliciantes”, diz Patrícia Borges, professora da Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar do Instituto Politécnico de Leiria. Depois de ler o relatório de 2013 da FAO, a chef e investigadora na área da gastronomia fez em 2015 uma prova de alimentos à base de insectos, que deu alguma projecção ao tema.
A investigadora reconhece que a ideia dos insectos para a alimentação ainda é olhada com relutância, mas acredita que, aos poucos, os hábitos irão mudar. “Quando as pessoas começarem a comer as bolachas e virem que são insípidas, vão tornar-se mais abertas a comerem os insectos inteiros”, diz Patrícia Borges, chamando a atenção para a “mais-valia nutricional” deste alimento.
Apesar de empresas portuguesas como a Portugal Bugs e a GotanBug já colocarem diferentes tipos de produtos à base de insectos nas prateleiras de algumas lojas e supermercados do país, a produção e transformação de insectos para alimentação humana em Portugal está apenas a começar.
Vasco Esteves, fundador da Tecmafoods, recebeu o título de exploração industrial para produzir e transformar insectos há menos de duas semanas. Desde então, a Tecmafoods pode produzir farinha de Tenebrium molitor para a alimentação humana, que vende sob a marca Greenmeal para empresas internacionais, que usam essa farinha na confecção de alimentos.
A fábrica, em Leça do Balio (Matosinhos), tem uma capacidade instalada de produção de 500 quilos de farinha por mês, que vende a 32,5 euros cada quilo. “Implementámos estruturas mecânicas para a produção”, explica o gestor ao PÚBLICO. “Não justifica a robotização. Estamos a criar tecnologia de agricultura e ela tem que ser ajustada à realidade.” Para Vasco Esteves, o crescimento desta indústria vai acontecer, mas pode levar ainda algum tempo.
Guilherme Pereira, presidente da Portugal Insect - Associação Portuguesa de Produtores e Transformadores de Insectos, é mais confiante. “Os próximos três anos vão ser decisivos para a indústria”, assegura Guilherme Pereira, que é também um dos proprietários da Portugal Bugs. A guerra na Ucrânia está a ajudar “a que o consumidor perceba que a Europa tem de ser mais auto-suficiente para a produção de alimentos e rações”, argumenta o empresário, acrescentando que este “é um passo para conseguirmos ter uma alimentação mais sustentável no futuro”.
Grilos crocantes
A GotanBug está sediada em Coruche, em Santarém. A empresa vende alimentos à base de grilo-doméstico: snacks de grilo de vários sabores, bolachas com farinha de grilo e farinha de grilo. “Os snacks vendem-se mais do que as bolachas”, diz César Silva, gestor e um dos três responsáveis da empresa. Os produtos que a GotanBug coloca no mercado são fabricados por terceiros, mas a empresa quer construir uma fábrica capaz de produzir até seis toneladas de grilos por mês.
Tal como o resto da indústria pecuária, para se poder produzir insectos para a alimentação humana, é necessário obter o licenciamento do Sistema de Indústria Responsável (SIR) do tipo 1, o que exige a construção de instalações dedicadas à produção animal. No caso da GotanBug, “dois anos seria uma boa estimativa de tempo para termos o projecto concluído”, avança César Silva. “Ainda não temos o financiamento fechado, mas será certamente acima de 200.000 euros”, acrescenta.
Um dos alertas da FAO é relativo à segurança alimentar, visto que algumas espécies destes animais podem ingerir poluentes, desde toxinas até metais pesados, que entram na cadeia alimentar. “Os insectos têm de ser produzidos no meio controlado para não se pôr em risco a saúde humana”, explica Patrícia Borges, que aconselha sempre para não se apanhar insectos da natureza para a alimentação, pois podem conter elementos nocivos para a saúde.
Mas nem sempre as empresas querem dar esse passo da produção industrial de insectos. Desde que foi para o mercado, em 2021, a Portugal Bugs já vendeu mais de 130.000 barrinhas energéticas com larvas-da-farinha. Mas Guilherme Pereira explica que não estão interessados em iniciar uma produção própria daqueles insectos. “Já existem muitos operadores da matéria-prima”, admite o empresário, sediado em Matosinhos. “Por enquanto só temos interesse em fazer produtos alimentares.”
O potencial de novos alimentos produzidos a partir de farinha de insectos é vasto: barras energéticas, bolachas, batidos, massas, chocolates, hambúrgueres, nachos, refeições prontas. A acessibilidade de preço virá com o tempo, antecipa Patrícia Borges: “Vamos passar por uma fase em que o produto vai ser mais caro, à medida que se vai optimizando a produção o preço irá descer.”
Esta dinâmica também dependerá do sucesso que os produtos vão ter junto das pessoas. “Se não se conseguir colocar os produtos à venda e obter receita, não se consegue investir no desenvolvimento dos produtos”, avisa Guilherme Pereira. Sem esse contínuo desenvolvimento é difícil obter um processo de fabricação mais em conta para o mercado.
Quem quiser comprar um quilo de farinha de Tenebrium molitor, pode pagar hoje cerca de 300 euros. Mas Diogo Palha espera conseguir baixar este valor. O empresário quer dar o primeiro passo para a produção alimentar da Thunder Foods em 2023. “Estamos confiantes de que vamos conseguir mecanizar o processo”, assume. Para isso, irá aumentar as instalações actuais, que partilha com a Entogreen, e construir nesse espaço uma unidade pré-industrial com uma produção mensal de três toneladas de farinha, segundo os seus cálculos.
Mas a expansão não ficará por aqui. Neste momento, a Thunder Foods faz parte de um consórcio de mais de 40 entidades, entre empresas, associações empresarias, entidades governamentais e centro de investigação, chamado InsectEra. Este consórcio avançou com uma candidatura de cerca de 60 milhões de euros ao Programa de Recuperação e Resiliência português, para acelerar o desenvolvimento do sector. Se ganharem o concurso, a Thunder Foods receberá quatro milhões para construir uma unidade industrial de 16 milhões de euros, que poderá começar a trabalhar em 2024.
Com uma capacidade produtiva maior, a unidade já fará parte de um mundo novo, pelo menos na área da alimentação, onde os insectos poderão estar mais próximos do paladar das pessoas. “Daqui a dez anos esta indústria estará estabelecida”, afirma o empresário. “Vai ser muito mais rápido do que foi até agora.”
Correcção: Ao contrário do que estava escrito inicialmente, já existe produção em massa de insectos para alimentação humana em Portugal. É o caso da Tecmafoods, que teve essa autorização apenas a 6 de Maio.